26 de nov. de 2017

Buda e Peste formam um só lugar: Budapeste

Aquele era um lugar como outro qualquer: só que diferente.

Era mais perto, só que mais longe. Era também mais monocromático: sim, Budapeste era de uma cor só, e a sua cor era amarelo. Todos os lugares eram amarelos, até os cantinhos eram amarelos, e as esquinas eram amarelas ou sem cor nenhuma. Se havia cor, era eu quem colocava. Eu.

Budapeste era como lugar nenhum: até hoje não acredito que eu tenha chegado até lá. Que eu tenha decido no aeroporto, atravessado a porta, entrado em um táxi e atravessado a cidade à noite, me sentindo em um livro de história no capítulo a partir da segunda guerra mundial - e depois.

Os dias que passaram me trouxeram a saudade de quem eu tinha sido, das pessoas que cruzaram o meu caminho, das que tem estado aqui até hoje, dos lugares escondidos. Do caderno no qual eu escrevia à beira do Danúbio, de capa listrada azul claro, que custou 0,50 centavos. Budapeste era tao barata e eu era milionária, como sempre fui, só que mais, só que no instante agora, naquele momento.

Quando Budapeste passa bem à minha frente, sinto saudade do medo que eu sentia; da língua que, para mim, era xingada; das linhas de metrô que me deixavam perdida no pensar e nas cores, mas me levavam aos lugares; dos passeios com as pessoas que me levavam pela mão; das comidas e sorvetes baratos; das passagens de trem, ônibus, avião a preços irrisórios; da escola de dança na esquina da minha casa, que mais parecia um edifício de tortura praticada pelo governo; da família de ciganos que se mudou para o bairro e chocou o restante da população; do bairro VIII, o mais temido e, por isso, o que mais despertava o meu interesse; do exagero das pessoas ao contar suas histórias; do mau humor estampado no rosto das pessoas e eu, na doçura de ser quem sou; as janelas que se fechavam até nas mínimas frechas e fazia qualquer quarto parecer sala de cinema no meio da tarde; dos passos sem rumo; das árvores com formatos estranhos; de só saber a sigla para as ruas; do parque ao lado e ao fim da rua e logo à frente e em todo lugar; o "melhor bolo da Hungria" que, na verdade, não tinha gosto de nada; da casa das pessoas; das barracas nas ruas; do alívio de encontrar uma padaria; das pessoas que sorriam para mim sem dentes e eu ficava horrorizada, mas sorria de volta, porque sou um amor de pessoa com dentes lindos, brancos e perfeitos, ainda mais na Hungria; de nunca comer nada porque eu achava tudo gorduroso demais; de não comer nada porque eu só sabia cozinhar macarrão; do pão com molho e presunto que, de repente, virou a coisa mais gostosa que eu conhecia; dos infinitos salames que colocaram na minha geladeira e eu nunca comi; da janela que ia do teto ao chão e me fazia sentir medo à noite; do armário embutido no fim da cozinha que era a travessia para outro mundo; do gato que sempre vinha me visitar; de pendurar roupa no varal e morrer vergonha do meu vizinho ver; dos jardineiros mexicanos que eram, no máximo, ciganos; das falcatruas do governo; das amigas que eu fiz; dos amores por quem me apaixonei, vivi e trouxe comigo; da catedral ao fim da rua com suas torres onipotentes (não é bem essa a palavra); de comer cheesecake em qualquer café; dos pães doces que eram bonitos e gostosos, mas me preocupavam por serem de farinha branca; das bicicletas; de caminhar o dia inteiro; da praça dos drogados; do homem que escondia um rato dentro de suas roupas; dos ônibus da época da união soviética que ainda rodavam pelo centro; de correr de madrugada até chegar no meu portão, quando eu voltava sozinha para casa; das bebidas baratas que eu nem bebia; de passar na frente ao cemitério que um dia eu iria visitar; das construções na rua que só acrescentavam àquela confusão toda; dos olhares estrangeiros; de nunca saber em qual entrada do metrô entrar, nem em qual saída sair; de ir ao supermercado e não entender nada; de dividir a chave e ficar presa do lado de fora de casa; de ir comer hambúrguer no meio da semana, de um dia qualquer que era dia especial só porque existíamos; de planejar viagens que, antigamente, pareciam uma excursão para outro planeta; de ouvir as pessoas falarem e contarem os casos de sua vida quando, na verdade, eu só queria ficar ali, sozinha, olhando e sendo; de como estacionavam os carros no passeio e eu achava um absurdo; de comprar chocolate só às sextas-feiras; de tomar sorvete de baunilha que me dava dor de barriga; de ir ao Aldi e achar tudo barato; de toda rua parecer a última parada da civilização; de infinitas lindas pontes que cruzávamos sem parar; de sair à noite para dançar e congelar de frio, querendo só voltar para casa; da pizza de madrugada que era quase de graça; das igrejas ortodoxas nas quais me aventurava e onde me mandavam usar véu sobre os meus cabelos; da revista de graça em inglês, que era a única coisa possível de ler além dos livros que trouxe comigo; de ser amiga dos amigos das minhas amigas; dos convites inusitados; da coragem de ser quem é.

4 de nov. de 2017

Minha pele é feita de aurora

Eu não saberia do que teria sido feita se não fosse o cair do dia, aquela hora da aurora, aquele vazio dos dias gelados e o motivo de ser.

Eu era feita do cair do sol, a caminho da noite. Se me visse, notaria as pegadas numa camada espessa branca a cair a madrugada inteira.

Minha pele é feita de aurora e, embora de dia, feita nas primeiras horas da manhã - quando eu ainda nem existia.

Se olhasse mais de perto, veria o brilho no canto. Se houvesse luz do sol, eu ficava transparente. Se fosse noite, eu brilhava. Mas estava sempre tudo ali: sempre tão eu, esse meu jeito de ser.

Minha pele é feita de aurora de uma hora que todo mundo esqueceu: era o meio dia da meia noite, quando todos andavam e cantavam e acendiam as luzes que lhes moram por dentro e corriam para pegar o trem que seguia na vida e mudavam as cores como se tudo fosse apenas folhas de um calendário. Era ali, naquela hora. Onde tudo acontecia e o mundo apenas girava.

Minha pele é feita de aurora e eu estou só adivinhando: a verdade é que não sei que horas são auroras, nem quais horas serão. Tudo que vi foi um escrito no caminhão que andava pela via e, como não gosto de sol, presumi que fosse de noite. É à noite que vem o cair do dia, a hora que a gente se levanta.

Por último, eis minha pele, feita de aurora: se chegares perto e tentares me ler, verás o nome de cada um: pessoas que passaram, mas ficaram. Em mim: naquela pele feita de aurora.

29 de out. de 2017

Partir não é deixar de ser

Partir não é deixar de ser, porque tudo continua sendo, mesmo que apenas existindo.

Partir não é deixar de ser: é só andar quatrocentos passos à frente e, depois, virar à esquerda. Poderia também ser à direita. Acho que tanto faz.

Partir não é deixar de ser, porque partistes deste mundo e mesmo assim você tem estado: hoje mesmo falamos de você. Ou melhor, escrevemos. Ela me perguntou como você era, como você era comigo e como éramos juntos. Tudo uma questão de ser: logo você, que nunca deixou de ter sido.

Partir não é deixar de ser: partir pode ser como começar um outro sentido.

Você partiu e, partindo-nos todos ao meio, sempre continuou, pelo menos para mim, a ser inteiro. Você, o mais inteiro de todos os homens.

Partir não é nunca deixar de ser: olha tudo o que você tem sido, mesmo ausente, mesmo tão longe, mesmo estando sem estar.

A voce, que partiu mas não foi partido: eu espero que, ainda que partindo, estejas a caminhar. Olho de longe os seus passos de pés abertos, vendo aonde eles vão te levar. Você, que vai, parte mas continua: partir não é deixar de ser. E, você, só tem sido. Tanto.

19 de out. de 2017

De repente, uma batida na porta

Era de repente, e era uma batida na porta.

Uma batida na porta tinha todos os sons bonitos que eu ouvira na vida: a música dos meus grupos musicais, a sua voz do seu jeito, os sotaques que eu achava bonito, as palavras que eu ouvi e me marcaram, o caminhar dos passos das pessoas que me inspiram e o barulho do vento num dia frio à noite.

Uma batida na porta era algo tão suave que eu até esquecia que existia, que viria, que chegava. Era também tão intensa - mas nunca pesava, porque sempre leve - que me abria os olhos e me fazia olhar.

Uma batida na porta chegou num dia que eu nem sabia que existia: mas estava lá. 

Eu estava rodeando o quarteirão, cantando do meu jeito aquelas meia melodias que soavam inteiras, segurando um copo d'água na mão, pesquisando as estatísticas do governo, planejando a próxima viagem, sentido todo o sentimento que cabia dentro de mim, pondo a roupa para lavar, dirigindo meu carro até o supermercado, correndo à noite, dormindo de madrugada, visitando a livraria, às vezes ficando indignada, indo ao cinema toda semana, escrevendo uma coisa ou outra... - mas o mais que eu estava fazendo quando chegara a batida na porta era vivendo.

Uma batida na porta veio do lado de lá: antes que ela visse que eu a vira eu já estava olhando.

E sentindo, e pensando, e pedindo, e desejando, e esperando, e desistindo, e acreditando, e criando, e esquecendo, e duvidando, e o que eu mais fazia: eu estava vivendo.

Uma batida na porta nem parece, mas tem uma cor: é azul.

Uma batida na porta nem parece, mas aparece. 

Uma batida na porta é.

2 de out. de 2017

E se amanhã o medo

E se amanhã o medo?

Parece que eu nem terminei de falar, mas é frase completa.

O som da entonação nos diria que é pergunta feita. Mas eu nem ouso - nem ouso - perguntar.

E se amanhã o medo ... eu paro e olho uma rua ali na esquina que é quase aqui agora.

E se amanhã o medo ... eu viro para o meu lado esquerdo, sigo reto e não caminho. Dei uns passos cor azul-piscina, abaixei o olhar. Era amanhã de novo, mas parecia hoje em dia.

Hoje em dia, que é quase de noite: olho a hora no relógio. Já reparou como as horas são sempre uma, sempre únicas e sempre singulares? Ainda que sejam duas horas, essa hora é só uma: ela é só ela. Inteirinha. Ainda que seja um quarto de hora. Ou meio dia. Ou quinze para as três. E assim, inteiros, somos todos nós - alguns, mais do que os outros. E, entre esses alguns, você e eu.

Mas vamos voltar para o amanhã e o medo que está hoje: o medo não é, mas ele está. Está aqui neste momento. Está estático. Anda em ondas em seu movimento. Vem e bate de repente, nos sacode até nos acordar: veja e olha, diz o medo.

Quando eu paro em uma esquina, eu paro e penso: e se amanhã o medo?

E se amanhã amanhecer de dia, bem na hora em que eu acordar? E se eu pisar na grama e senti-la? E se eu atravessar a rua enquanto os carros estão parados? E se eu tiver tempo e chance e sensibilidade para olhar os detalhes daquele tom de cor em que foi pintado um muro sem vida? -- Ah! E se amanhã o medo?!

Eu me chamo um nome e sou. Eu sou uma pessoa vivida, viva, vivente e vivaz. Muitos dizem que o verbo é existir, mas eu digo: vá além.

E se o amanhã chegar, eu vou olhar e sentir. Eu vou olhar e parar. Eu vou olhar e repetir o nome enquanto escuto a minha voz.

E se amanhã o medo chegar?

9 de set. de 2017

O tempo que o tempo tem

Se paro para pensar no tempo que o tempo tem...

Me lembro que ainda ontem era outro dia. Em outro ano, e outra época, na mesma festa e em outro lugar.

O hoje é o ontem que acontece hoje de novo. Ainda ontem isso tudo era amanhã. Mas, hoje, já é hoje.

O tempo que o tempo tem leva consigo um pouco da gente. Mas eu sei que deixa muito de si, e de mim, e do outro, e de nós, e de todos. O mundo inteiro cabe no tempo. O tempo quase que não cabe em si.

Se pensássemos no tempo que o tempo tem... não teríamos mais tempo.

Eu hoje acordei e fui viver tudo de novo. Tudo outra vez. Mas como se fosse o primeiro dia. Todo dia que eu acordo é o primeiro dia.

Eu pensei que dentro de 5 minutos caberia uma eternidade: era setembro e eu ainda não tinha encontrado você, minha amiga, que hoje sente falta de mim. Hoje é setembro de novo, já te encontrei e nos separamos, porque cada um colocou o pé num continente - mas nas aulas de história era um mesmo.

Hoje é setembro e há 7 anos foi setembro de novo. Ano que vem, se a vida chegar, será setembro outra vez, e eu sei que setembro se repetirá até depois que a gente for embora.

Outro dia era esse mesmo dia de hoje, só que outro dia, ainda que do mesmo nome e mesmo número. Fazia um pouco de frio mas eu gostava de sentir um pouco de frio, então eu não vesti blusa de frio alguma - eu estava sendo eu. E chovia. Ou melhor, chuviscava. Havia umas árvores no caminho que eu nunca esqueci a cor: eram verde escuro. Uma bicicleta parada na esquina, e carros estacionados na diagonal. Atrás, havia os prédios de tijolos que eu bati o olho e os vi para sempre: jurei que iria desenhá-los em folha de papel, como eu fazia quando era jovem, mas desenhei mesmo foi na memória. Éramos cinco, depois éramos sei, e então sete. Mas faltava mais um: você, que faria de nós oito, e de mim inteira, e de nós dois quase um, só que dois, porque dois é número inteiro: são duas pessoas inteiras juntas. Você não estava, mas já era presente. Eu já te notava, mas não ousava te olhar. Era então onze horas da noite e você chegaste com um cartaz em mãos: e eu o vi, mas olhei mesmo foi para os seus olhos e o seu cabelo e o seu sorriso e o seu jeito de andar e o tom da sua voz e as palavras que você falava e o modo como você discorria e o seu cheiro que eu sentia. Eu só notei, e continuei sentada no sofá.

O tempo que o tempo tem, penso eu, deve caber dentro de uma caixinha. Eu fico pensando se o tempo tem mãos: que é para se segurar.

Se não, vivemo-lo. Até o último minuto, e todos os segundos, até o último dia da vida, e o que foi ontem, e o que é hoje, e o que já é quase amanhã. Vivamos, enquanto é tempo, o tempo que o tempo tem.

E, enquanto isso, o tempo entre os tempos, aquele no meio do caminho, entre o passado e o futuro: vivamos.

12 de jul. de 2017

Entre nós dois anda o mundo

Transcrição de coisas pensadas e escritas - só que no meu diário: 

Eu queria viver ao teu lado, porque isso significaria não apenas existir.

Queria te abraçar por inteiro, até se desfazer de mim - vai ver, isso é tornar-me eu mesma.

Eu queria ir comprar leite na padaria contigo, porque o leite acabou. Experimentar doces exóticos só porque não têm gosto de nada. Caminhar segurando as suas mãos, ou estar sempre a uma distância em que eu pudesse tocá-las. Eu queria ter o meu cabelo grande só para você tocá-lo, só para você olhar e ver, só para lavá-lo apenas quando tomo banho contigo. Eu queria pintar as unhas só para vê-las descascar e ouvir que você não liga - até gosta.

Eu queria ter você só porque, assim, sou um pouquinho mais eu.

Eu queria que chegasse de noite só para saber que as horas anteriores àquele momento foram vividas ao seu lado.

Queria que você comentasse comigo uma coisa sem importância, só para eu saber o que veem seus olhos e poder notar suas observações sobre o tudo e sobre o nada. Eu queria te encontrar num café no meio da tarde, só para ousar pensar e sentir que o mundo é todo meu.

Eu queria saber o que é passar dificuldades financeiras - mas ao seu lado. Queria virar o pé ao seu lado. Perder as chaves de casa enquanto estivesse contigo. Até quebrar o braço - eu não gostaria, mas teria coragem, se fosse ao seu lado. Ser xingada na estação de metrô. Não entender direito o que o dono da venda da esquina falou. Perder-me em meio às opções no supermercado. Não achar o caminho de volta para um lugar que eu chamaria de casa. Eu queria escolher a profissão errada, cortar o cabelo e me arrepender, quebrar a torneira da cozinha e estourar o encanamento. Queimar o jantar. Nunca ter coragem de ir aos correios sozinha por medo - mas, tudo, ao seu lado.

Eu queria a glória de você participar, e não apenas existir.

De você participar um pouquinho de mim e de quem eu sou. De poder lhe dizer como andam as coisas, ainda que elas não andem. De te contar meus medos só para você rir e eu achar que está tudo bem. Eu queria te dar um livro de presente - aliás, eu queria te dar todos os bons livros de presente. E, em cada um deles, te escrever uma dedicatória só minha, só para você. Queria te comprar comida numa barraca de rua. Queria te mostrar os caminhos alternativos que faço só para fugir do comum - literal e simbolicamente.

Eu queria poder vestir uma roupa e pedir a sua opinião, sabendo que você não dá a mínima. Queria ficar resfriada ao seu lado - ao lado de você, que já ficou resfriado perto de mim.

Eu queria te contar que há pouco comprei o livro da escritora XXX sem sequer saber que ela tem o mesmo nome que XXX. Que coincidência! - e eu nem posso te contar.

Eu queria saber como é o lugar que você mora, entrar na sua casa e te ver viver.

Queria saber como são as janelas e, se há detalhes, como eles são. Se não há, eu os crio. Queria saber se, havendo elevador, você pega a escada. Eu queria saber a cor da roupa que você está usando hoje - ah, como eu queria! E todos os dias eu te perguntaria a cor de novo, e todos os dias - até o amanhã, seriam hoje.

Eu queria saber o nome do xampu que você usa no cabelo, a marca do seu sabão em pó, quantas vezes você mastiga a comida: as coisas triviais são as mais únicas e mais importantes. Elas nos fazem ser quem somos.

Eu queria saber quantas vezes no ano você tomou sorvete. Qual foi a última coisa que você leu. O que acha do governo.

Queria que você me escrevesse: uma carta, um cartão ou apenas meu nome.

Queria que, quando você me lesse, saísse de si e visitasse a mim.

Eu queria que você me conhecesse. Me soubesse. Me entendesse. Me visse. Me sentisse. Me ligasse. Me convidasse. Me dissesse (esses verbos me deixam zonza).

Eu queria que você fosse você. Apenas você, todo e todinho.

Eu queria saber qual é o seu peso, só para compará-lo ao meu. Sabe quanto eu peso? Neste momento, 55kg, mas o meu peso era 52 kg.

Eu queria saber a sua altura, só para eu olhar para as coisas, para os prédios e para as pessoas e saber que você é mais alto - você será sempre o mais alto. E também, para saber se aquelas coisas altas, como nas gôndolas do supermercado, você pegaria para mim - só que na vida.







11 de jul. de 2017

TUDO DEVE ESTAR SENDO O QUE É

Meu deus, e se o mundo despencar? E se a chuva, que era como quase chuviscando, virar tempestade? E, se disso tudo, eu apenas sentir? Se disser que são apenas os meus sentimentos, terei justificativa? Há remédio para tudo isso? Qual o nome que isso deve se chamar? Como é ser assim? O que sou, nesse momento? E as pessoas, o que aconteceu com o que elas eram? E o que se tornaram, há um nome além daquilo, há um nome além de "papai"? O que são as pessoas agora e o que eu achei que elas eram? Como é o nome do azul do mundo neste momento, mesmo?


TUDO DEVE ESTAR SENDO O QUE É.


Mas, então, tudo é novo de novo, como um choque no rosto, um banho frio, cair do 2o andar, descer as escarradas correndo sem tocar no corrimão, subir as ladeiras da cidade de Belo Horizonte de carro - ufa! que medo!

TUDO DEVE ESTAR SENDO O QUE É.

Tudo deve estar sendo o que é, penso comigo mais uma vez. E pensarei assim em todas próximas "próximas vezes". A cada momento - a cada 5 minutos, quando sou levada a lembrar. Esqueço, e já lembro de novo. Me distraio, e já sou levada a retomar a realidade que me cerca. Ando um pouco e levo um tapa no rosto. Me levanto, passam alguns segundos e vem o soco no estômago: o estado das coisas neste momento.

A órbita do mundo nem uma vez sequer saiu do seu lugar. Então, está tudo certo - até o que está errado está certo, afinal.

"Tudo deve estar sendo o que é" - esse é o meu mantra diariamente, segundamente, terçamente, minutamente, num tempo inventado, porque perdi o passar dos dias.

Quando olho os seus olhos, vejo o mundo neste momento: tudo deve estar sendo o que é. Seus olhos são claros como a Criação, então não há como eu não entender os momentos. Está exposto, foi me dito, está escrito. Além disso tudo, é o que tem sido vivido. E, para isso, não há escapatória: a vida é o que se é.

As escolhas de um tempo são as escolhas da vida. Porque o que eu escolhi num momento é o que fará a histórias dos próximos dias. Isso tudo me lembra duas coisas: o livre-arbítrio, mas também o tal do destino. Será que isso tudo estava programado?

- - - - - -

Tudo deve estar sendo o que é mesmo.

Respiro fundo.

E milhares de vezes ao dia me lembrarei: "tudo deve estar sendo o que é".

9 de jul. de 2017

Algo errado não está certo

Algo errado não está certo: eu já saberia pela temperatura lá fora, pela neblina que embaça a janela do meu carro enquanto dirijo para lugar nenhum. Gosto mesmo é de ficar dirigindo, sem destino - estou me dissipando.

Alguma coisa errada não está certa, e isto sou eu quem estou falando. Falo quando não digo. Quando quero dizer, escrevo.

Algo errado não está certo e já havíamos chegado a essa conclusão no ano da copa do mundo - ele, o amigo, e eu. E o que tínhamos em comum. Sim, nós mesmos, se é o que você pensa. E o que tínhamos em comum era isso: você. Nós dois fomos um dia seus amigos...

Ei, algo errado não está certo: já dizia o meu coração, que não fala, mas assopra.

Algo, esse algo, e então escrevo na última folha do caderno, aquela escondida. Ultimamente, pago para ouvirem o assunto: é o que chamamos de "terapia" - só um bem entendido do assunto para te entender, ligar os pontos e me convencer.

Divago como se não houvesse amanhã porque, quando o amanhã chega, chamamo-o de hoje -- eu, definitivamente, não sei conjugar verbo e caminharei assim: sem dominar meu próprio idioma, que me domina e me obriga escrever.

Certo não é errado, mas o certo e o errado foram criados. Salva aquele que estuda antropologia e emprega o relativismo a seu favor: tudo é relativo, mas insisto: algo errado não está certo. E dessa vez não usei meu cérebro, do qual sempre faço uso, mas ouvi Eu. Eu, que moro aqui dentro de mim.

Eu, que sou. Enquanto o errado não é o certo.

Algo errado não está certo e a sensação é que apunhalaram a minha mão. Fecharam meus olhos para as belezas que restavam. Taparam a minha boca e perdi o som do seu nome. Meus ouvidos nunca mais vão ouvir a gentileza que é você...

Hey, você: algo errado não está certo.

7 de jul. de 2017

O céu se enganou

O céu se enganou: mandou uma carta para o endereço errado.

Ele me olhou lá de cima, com seus olhos de imensidão, mas se tivesse me puxado, eu teria falado: "hey, não é para mim, não. Céu, tem algo errado, um leve engano, deve estar enganado".

O céu deve ter se enganado: porque me pegou desprevenida, quando eu folheava as páginas de um jornal como quem desiste da esperança. Veio falar comigo quando eu já estava de saída, quando eu já havia subido as escadas e agora descia

Hey: o céu se enganou.

O céu se enganou porque não sou eu a receber aquilo para ler, não. Porque eu quis ler algo assim tanto na vida, que se passou vários anos e eu não vi nem o reflexo de uma palavra. Nem a sombra eu vi. E isso era como um sinal de sol - do lado de lá.

O céu cometeu um engano: trocou os papéis e, vai ver, até esqueceu meu nome. Me deu um presente de aniversário quando eu já estava ficando velha - em junho sou sempre jovem, mas ele deve ter se enganado!

O céu se enganou porque não está a falar comigo. E, se está, não tenho ouvidos. Porque não quero ouvir aquilo que não sei responder. Nem quero ler, porque não sei mais escrever. As letras não têm mais o som de quando eu te escrevia. O céu só pode ter se enganado!

O céu acordou 30 minutos após o horário: já passava das 8h e ele perdeu a hora. E, eu, já estava seguindo caminho. E o céu, enganado, me viu mesmo assim. Fez chegar até a mim. Mas eu não li, não vi e não senti - até hoje tenho evitado. "O céu só pode estar enganado", penso eu todo dia. "Porque ele iria fazer isso por mim?", acrescento ao pensamento. E sigo em frente. Mas ele vem e me puxa.

E o silêncio toma conta dos dias, como nuvens negras pesadas a se aproximar - para uns, parece tempestade; para mim, é sinal da mais pura calmaria. O som do silencio é o maior estrondo que os ouvidos humanos um dia irão escutar.

Enquanto isso, a única - a única! - coisa que quebra o silêncio é minha indagação: "o céu deve ter se enganado. Eu não era o destinatário daquele remetente que nem li, não".

O céu se enganou e, estando enganado, só pode ter se enganado.

A destinatária não seria eu.

O céu se enganou.

6 de jul. de 2017

Papai me empresta o carro

(Essa é apenas uma música da Rita Lee)

Papai, me empresta o carro. Me empresta o carro, que a via é perigosa, é contínua e é de dia - se fosse ao menos de noite!

Me empresta o carro, que estou na subida. Me empresta logo, que daqui a pouco vem a descida. Papai, me empresta o carro para as balizas que tenho feito ao longo da vida: sempre entrei nas vagas de baliza de primeira, com muito esmero, parecendo filme - até eu me perguntava: foram minhas mãos a dirigir ou era o meu cérebro a me guiar? Mas estas, de que falo, são apenas as simples balizas de carro...

Papai, me empresta o carro, deixa o tanque cheio de gasolina, ajusta o retrovisor - sim, ajuste o retrovisor para mim. Diga-me quando frear, pega o volante se for preciso! Passa as marchas que eu há muito tempo já sei passar de cor - quero sempre um carro manual, porque carro automático é falta de criatividade!

Papai, me empresta o carro, porque todos queremos guiar e sair logo do banco de carona.

[ Um dia meu pai me deu um carro: era de manhã e ele me levou na loja para ver. A marca é Chevrolet, que é a marca que ele mais gosta. Mas eu fiz do carro algo meu: comprei um adesivo, que é apenas uma letra, a letra D, e que veio de uma longe península que está logo aqui no meu coração, e o enfeitei perto do farol traseiro. Desde então ele traz sempre consigo, e eu sempre comigo, o D, nosso amor comum. E, assim, tomei posse: entrei, dirigi, convivi com ele e o olhei nos olhos - carro tem olho, sabia? Temos convivido quase que diariamente, o meu carro e eu, com exceção dos dias que caminho sozinha, porque eu gosto muito de caminhar pelo mundo enquanto vou vivendo - caminhar é viver a fundo. ]

Voltando ao assunto: papai, me empresta o carro. Me empresta o carro que você tem. Me empresta um carro que passa por uma via do mundo. Me dá as direções. Me escuta te chamar sem falar teu nome. Me empresta e eu te devolvo o que é teu. Pego para mim só o que é meu, só o que sou eu - por isso, papai: me empresta o carro?

2 de jul. de 2017

De sua formosura

Formosura parecia palavra clássica. Eu nunca a entendi. Mas já vi.

Parecia até que eu a tinha tirado do dicionário.

Formosura é como a forma que a gente tem: alguns se formam, têm forma, são formados, são formosos...

Outros, não. Eu, sim. Eis aqui: a formosura.

Formosura, eu diria, é o contorno do corpo da gente. É ser alto ou ser esperto. É o formato amendoado dos olhos. São as duas pintinhas de sarda que tenho no canto esquerdo ao lado dos olhos. É o meu cabelo quanto acordo com ele bagunçado de manhã.

Formosura é como estar: estou hoje; amanhã, sou.

É também que nem formidade: uma palavra que nem existia. E um dia foi criada. E, criada, passou a existir. Seremos todos formosos um dia? Entraremos todos, então, na mesma forma? Como um bolo? Formados? E sairemos do forno, todos iguais?

Fui me formar longe daqui. Fui ser formosa por ser eu. Fui pegar a formosura da vida em cada gesto meu. Fui dar forma ao que nem existia. Ser formoso é ser inteiro.

Tudo era pura formosura. Cada dia e cada noite e, no intervalo, cada minuto constituinte. Até quando fechava os olhos era formosa. E, quando o via - que formosura ser ele assim tão formoso!

Acho, afinal, que se és formoso, aos meus olhos, é porque gosto da sua forma. E a sua forma, nesse caso, é o que gosto por dentro e por fora de ti. Do fio do cabelo aos dedos do pé, do som da sua voz ao jeito que dormia. Era como o mundo a ser formado diante dos meus olhos; formosura - a forma de você ser.

24 de jun. de 2017

If today be sweet

Eram os sábados de manhã. E também as vésperas de sábado. E até o dia depois, que tinha resquícios sabáticos. Sábado era o sétimo dia, mas para mim era sempre o primeiro, ou, quem sabe, o último: qualquer uma dessas colocações o fariam único. Afinal, sete de sábado era também um número primo.

Dessa vez o céu está de um azul escuro, e eu já reparei, com esses meus olhos tão detalhistas a encarar o mundo, que no inverno o azul do céu se impregna mais de si: vívido, como se gritasse que está ali.

If today be sweet, dirijo meu carro cujas portas são depósitos de livros. Só hoje, sábado, comprei cinco. Estaciono num lugar feito só para mim naquele momento, numa sombra que surgiu nem sei de onde e, a passos largos, entro num cinema para assistir filme francês. Todo sábado que é meu é assim.

Se hoje é doce, gravo em um lugar qualquer (alma, coração, mente, caderno, diário ... não importa onde, mas sei que irei sempre lembrar) um senhor de cabelo branco, médico, cuja palestra assisti (eu adoro aprender): o que mais me chamou atenção, além de suas viagens e assertividade, era como falava dos livros. "Aquele livro que li" ou "este livro que estou lendo" e aí nos passava o nome. Aquilo para mim era a mais pura expressão de esperança no mundo. Era como um amor à vida. Era como nunca ter medo de acabar. Em seus, sei lá, oitenta anos, ele ainda lia livros como se não fosse morrer. Será que ficava ansioso para ler o máximo possível já que os dias estavam prestes a acabar? Aquilo sim era a doçura do mundo.

A doçura do mundo... ela apareceu me acenando ali na esquina. Estou sempre distraída com o detalhe dos sons da música no carro, ou observando o ângulo de um prédio se eu tivesse feito arquitetura, ou enxergando a poesia que quiseram apagar. Estou sempre distraída, mas às vezes paro e penso - ou melhor, sinto.

Fui ao supermercado e no caminho havia um vento frio tão meu - eu não poderia ter ficado mais feliz. Comprei sete pães de queijo que, pelas minhas contas, saíram a menos de 30 centavos cada um, e eu pensei como que a vida parecia um milagre incrível. Enquanto isso, no caixa, eu olhava para o outro lado da rua onde havia uma farmácia: ah, quanta possibilidade! Quanta poesia! (acho que estou muito sensível neste momento, como que aberta para o mundo dizer-me e para expressar-me a mim que sou).

O moço da livraria respondeu a minha mensagem hoje de manhã: Eichamann em Jerusalém tinha. O outro livro, não. Mas então eu fui em outro canto abençoado do mundo, as tais livrarias, e encontrei o livro que queria e mais quatro. Sim, hoje foram cinco.

Sábado é a doçura do mundo. É quando o gosto da vida sai doce parecendo salgado. É quando não há culpa e há entrega. É quando somos nós mesmos do nascer ao pôr do sol. É o dia em que se escolhe fazer o que quiser. É como alguém pegando na nossa mão nessa caminhada. É sempre de dia e, quando chega a noite, tudo se renova e se faz novo de novo.

A doçura do mundo.

If today be sweet...

10 de jun. de 2017

Flor dá cada susto

Flor dá cada susto: o botão se fecha - passa primavera, vem o verão, chega o outono e é agora inverno - e, então, quando a gente está passando, sem mais nem menos, assim do nada, a flor se abre.

Flor dá cada susto, faz a gente dá um pulo com o coração. Flor já até morou nele. Flor agora reside em algum lugar por aí.

Flor dá cada susto - flor é substantivo feminino no português. Mas, para mim, flor é substantivo masculino, porque flor, neste caso aqui neste momento, uso para me referir a Você.

Flor é adjetivo: a gente chama quem a gente gosta de flor - isto é, no português fazemos assim.

Falo em línguas, falo inglês. Nunca disse o que seria, porque não falei português.

Flor dá cada susto: olho e vejo uma flor, quando nem mais a via.

Flor é uma coisa assustadora: ora nos assusta, ora é suave.

Flor também é cheirosa e às vezes sinto o cheiro dela lá do outro lado do mundo, que é do mesmo lado, só que atravessando o mar.

Flor assusta tanto.

Flor dá cada susto e eu te chamei de flor. Flor é substantivo, adjetivo, nome próprio, advérbio de tempo e de lugar. Flor é outra língua estrangeira, flor é Você.

Ei, Você, você me é uma florzinha. Ou um florzinho. E a cor da flor é amarela.

Flor, você me dá cada susto.

27 de mai. de 2017

Meio-dia meia-lua

Meio dia parece a luz mais alta no céu: o sol está no trópico que atravessa vidas.

Era meio-dia, mas era meia-luz. Era meio-dia e era quase meia-lua.

Meio-dia não era apenas a hora do relógio: aquela também se chamava doze horas, 12 p.m. e, por ser de dia, eu sempre confundia com a.m. .

Meio-dia era muito mais: era parte de um dia passado, era parte de um dia que passou. Era metade de um dia logo à frente. Mas só metade.

Meio-dia tinha ainda outro significado: meia-visão. Daí meia-luz. E então meia-lua. É quase como que de noite.

Olha e vê: a luz nos seus olhos ao meio-dia do dia não clareia, mas ofusca.

Quem tem ouvidos, ouça: meio-dia parece dia, é quase como luz, mas é meio, é metade. Parece claro, mas traz-lhe escuridão.

Uma vez li no Livro da Vida escrita pela mão do todo poderoso: quem olha para o que acha que é luz, cega.

15 de mai. de 2017

A insustentável leveza do ser

Eis que olhei e vi: era ele e era ali.

Era sexta de manhã, na cidade-do-fim-do-mundo, no sol do meio-dia-de-todas-as-horas e aconteceu logo ali: meus olhos viram a leveza do ser. Eu nunca teria sequer imaginado tal possibilidade.

De repente, passou por mim algo alto e leve, embora de profunda presença. No meio de tantas pessoas e premiações, quando o sol bate no verde da grama e reflete nos meus olhos, ainda assim o vi.

O vi, porque o notei.

De repente, e não me dei por mim.

A insustentável leveza do ser: quando aquele alguém (ele) caminha a passos largos e rápidos e até parece que está correndo. E seus cabelos estão ao vento. E combinam com a barba. E seus olhos eu não vejo, mas reparo no movimento do caminhar. E do parar. Onde coloca as mãos. O tamanho do sorriso e a forma que a boca toma quando abre um sim.

A insustentável leveza do ser: quando alguém (eu) dá-se por vencida sem nem lembrar que aquilo era jogo. E vê-se, de repente, desarmada. E todos os muros construídos por anos caem ao chão. E os olhos não param de olhar para o seu único objetivo: a beleza da criação logo ali. E pego-me sorrindo, e rindo de novo, e sem usar a razão. Logo eu, dona de mim. E leve, como se todos os dias não tivessem sido nada mais que o primeiro. E o primeiro, enfim, chegou.

Pegaria a chance que passara sob o meu nariz? Mas, como é que se faz? Eu sequer lembro o nome. Eu nunca fiz esforço físico nenhum. Eu nunca dei um passo naquela direção. Diga-me, menino-bonito, como é que se faz? E como é o seu nome, que eu logo descobri? E como falo com você, se já sei seu número mas não sei quais palavras usar? E se eu te escrevesse, você leria? Mas é que eu escrevo de um jeito que dá voltas - você entenderia? E o que eu não disser e só te olhar nos olhos, você consegue perceberia?

Diga-me, menino-bonito, porque estou logo aqui e você logo ali.

Diga-me, como um sussurro, para combinar com a insustentável leveza que atingiu meu ser, para ser parte do inteiro que é você, para ser leve como os passos que deu e eu contei quando olhei. Diga-me: como ser assim desse jeito que você é? Por que és assim tão bonito de um jeito que só você é e que só eu naquele dia vi?

Diga-me, menino-bonito, que estou daqui a te ver e me sinto leve, de uma forma insustentável que eleva o meu ser.


7 de mai. de 2017

Tempestuosidade

Um dia eu andei numa rua imaginária mas que havia existido numa história anterior. Nela, dei-me conta de como anda o tempo: para frente e para trás.

O tempo anda de um lado para o outro, de uma maneira que me faz perguntar se ele sabe aonde está indo.

O tempo está à nossa direita e à nossa esquerda e, ainda assim, ele existe atrás de nós e à frente.

Tudo isso me faz presumir que o tempo é além do tempo.

O tempo é além das horas que demos a ele. O tempo acorda quando o céu fica claro de novo, e não às 6h da manhã. E ele só escurece ao fim do dia, nunca às 18h.

O tempo é dono de si e toma seu próprio rumo a fim de fazer nossos caminhos.

O tempo é o significado que ele tem. E, esse nome, foi nós que demos a ele.

O tempo soa como a melodia que se escuta há dois vales de distância, tem a textura de uma folha de papel depois de ser escrita, sobe o rio como os peixes chegam às margens quando buscam alimento.

Um dia eu andei numa rua imaginária mas que havia existido numa história anterior e entendi o valor do tempo: ele vale mais do que as horas com que o preenchemos.

Eu não entendo nada, mas daí eu entendo tudo. Eu paro e olho e vejo uma porta verde oliva e quem um dia esteve escorado nela, com uma jaqueta colorida e uma placa que dizia "igreja não sei de quem". Mas deveria ser de algum santo que foi algum homem que pisou nessa Terra. Nesta hora, estou me dissipando, mas estou sendo eu mesma, e nenhum pedaço de mim se dissipou, porque sempre mantive-me inteira.

O tempo um dia voltou e me olhou cara a cara. E ele já fez isso de novo mais vezes. Parecia ser inverno de novo, e então primavera - mas tudo era apenas o tempo sendo ele mesmo.

Pedem para que demos tempo ao tempo, mas o tempo não precisa de nós, nem do que temos a oferecer a ele. O tempo é que nos dá e, por isso, peçamos: dê -nos tempo.

Dê -nos tempo, porque hoje já é quase ontem de novo. Dê -nos tempo porque o dia acaba e já é quase amanhã. E então, é tudo novo de novo, e e até a gente é novo de novo, e tudo é resinificado e passa a ser como o Primeiro Dia da Criação.

De-nos tempo para assimilar o que temos aprendido. Peço tempo, porque fui conversar uma conversa difícil, e só agora colho os resultados. Peço tempo porque no começo eu não entendia nada. Peço tempo porque só depois entendo o nome das coisas. Peço tempo porque estou a ser eu mesma, quem fui desde o começo em que meus pais me fizeram: saí na rua, e estou a ser.

O tempo fez um acordo comigo, deu um giro e se foi. Desde então, é tempo transcorrido, tempo mantido, tempo para passar e passar dos tempos. Cai a tempestade e então somos lembrados: é tempo. É o tempo. É apenas o tempo sendo ele mesmo e lembrando-nos: sejamos, também.

2 de mai. de 2017

Como é que se escreve

Todas as coisas do mundo só existem porque têm nome e o segredo para tudo isso é: como é que se escreve?

Saiba como escreve, tenha o oráculo desvendado em mãos. Saiba como escreve, leia o mapa da subjetividade. Percorra-o. Escreve e cria, assim, o primeiro momento de todas as coisas.

Então era esse o momento inicial: as primeiras palavras. O modo como eu as escrevia. O contorno do S. Letra cursiva ou letra de imprensa. Uma anotação só minha que era como desvendar o mistério da criação diante dos meus olhos: bastava ler o que havia sido escrito.

Como é que se escreve: o nome dele, a cidade da era soviética que ainda se mantém de pé, o sobrenome de quem a gente ama, os números do calendário, as ideias repentinas, o momento que passou, o olho na pulseira do seu braço, o dia seguinte, o barulho que o ventilador deveria fazer, as horas no relógio, as faces comuns, os lugares conhecidos, os passos que a gente deu, a melodia que os fins do dia trazem, o cheiro de inverno no meu mês, a porta da lanchonete onde comi a refeição que me deu vida, o episódio da história, o amor que eu senti um dia ... como é que se escreve?

E, escrevendo, qual será o nome?

Dê-me um nome, para que eu o dê às coisas. Todas as coisas pedem nomes, pois é a razão primeira para que possam existir. Então, me diz, como é que se escreve? Me diz, e eu mesma escrevo por mim.

Qual o nome disso?

Sabe como se escreve e terás o segredo da criação e do andar invisível, mas palpável, dos dias.

28 de abr. de 2017

Por quem os sinos se dobram

Os sinos se dobram. Quando não se curvam, dobro eu mesma eles.

Os sinos se dobram na curvatura da vida, na esquina da rua, só não me lembro a hora e o dia.

Por quem os sinos se dobram? Os sinos se dobram para ele. Os sinos dourados.

Pensa a ti mesmo que tens dobrado os sinos para uma pessoa que não foi, para uma pessoa que não conhece, para uma pessoa a se desvendar que nunca se revelou, para uma pessoa que sequer é.

O pior male a acometer uma pessoa é o malo de não ser.

"Por quem os sinos se dobram?", perguntei-me eu mesma a mim.

Os sinos fazem barulho, mas quando uma pessoa não fala, não há um ruído sequer. Os sinos são duros e frios. Os sinos ficam no alto, a uma distância que não se consegue medir. E, mesmo assim, os sinos se dobram... Argh.

Eu hoje parei para me perguntar por quem os sinos se dobram. Olhei para aquela pessoa que não digo o nome só para não nomear, mas que todas as características revelam o ti: o ti é você, é o ele, é o outro, mas não sou eu. É Ele, dourado, da cor do sol, reluz como ouro, mas não vale 1 Euro.

Uma moça, que é uma senhora, despertou em mim a pergunta do ser: "Márcia, por quem os sinos se dobram? Por quem tens dobrado os sinos?". E eu olhei. E, quando olhei, eu vi. Não na hora, porque na hora eu estou pensando eu outra coisa ou lutando para não se abalar. Mas, no fim do dia, quando já era quase amanhã, e eu dormi e acordei, eu percebi: afinal, quem é aquela pessoa por quem os sinos se dobram?

Não o conheci de verdade, porque nunca me deixou aproximar. Hoje, conheço-o menos ainda. Sabe-se lá quem é. Talvez a mãe, o pai, a irmã, a outra irmã e todos os outros irmãos o conheçam. E os avós, em parte. E as aulas de história - acho que é nas aulas de história e das guerras mundiais que mais o conheço. Porque, nos personagens históricos, o identifico. O ano era 1941.

Aquela pessoa, que é Ele, eu não sei quem é.

18 de abr. de 2017

A posteridade nos julgará

A posteridade nos julgará no dia em que ela for embora. E enquanto viver. E também no dia em que ela voltar, julgará.

A posteridade tem unhas e dentes. Tem olhos oblíquos. Tem traços familiares e descende de uma família. É posterior, mas nunca em cima, ainda que sobre - sobre a cabeça de todos nós.

A posteridade nos julgará e, neste dia, nos olharemos com vistas desconcertadas. Dá vontade de correr e sentar no sofá. Balançar os pés como uma criança sem sombras de dúvida. Ver o carro entrar na garagem.

O dia em que a posteridade nos julgará é agora. Está sendo neste momento. E foi também no momento anterior, e no posterior, e no seguinte. Parece que não tem tempo: dura o dia inteiro. Parece que não tem duração: mal acaba, já começou de novo.

A posteridade é como andar em círculos. É como nos pegar pelas mãos, mas nunca para guiar. É um entardecer frio de tão quente, e eu preferiria que fosse menos 20 graus. Eu estaria no lugar certo, e não haveria posteridade, nem anterioridade, nem invenção de palavra nenhuma, nem descrição das relações que os humanos deveriam ter, nem o modo como vivem os dias, nem os pensamentos que lhes passam pela cabeça: porque só haveria tempo para ser e viver.

Um dia a posteridade nos julgará, e eu a olharei de frente.

21 de mar. de 2017

O tempo passa como um leão que ruge

Meu querido: o tempo passa como um leão que ruge.

Ainda ontem nem era hoje, e hoje já é quase amanhã.

Tudo o que é preciso é eu apagar a luz do quarto: sou dona do próprio tempo.

Minha querida: o tempo passa como um leão que ruge.

Já começaram as provas, já se iniciaram as datas, o calendário não para e a linha temporal é tênue.

Acredito que perdera a conta, mas você sequer contou. Um dia de cada vez não é soma, porque não é dia nenhum. Um dia de cada vez e o ano não existiu. Um dia de cada vez e fico rouca e a voz então some. Um dia de cada vez parece uma eternidade: mal começara e eu já o via acabando.

Que não se engane quem nunca andou: o tempo passa mesmo assim. Mesmo para esses.

O tempo passa como um leão que ruge: descobri em um pedaço de papel com data. 17 sempre foi o número de sorte do meu pai - mas, naquele-março-naquele-ano, sorte só se for a dele. Até hoje não foi a minha. Porque chegou março outra vez, o que quer dizer que outro março se foi.

O tempo passa como um leão que ruge: ruge alto, longe, e ecoa...

O tempo passa ... como um leão que ruge.

14 de mar. de 2017

Quanto a mim, choro menos

Quem sabe eu precisasse avisar: quanto a mim, choro menos.

Não choro mais com comerciais de tv; nem com finais de filme. Nem no meio do filme eu choro mais. Não choro mais com trilhas sonoras no fundo e nem com a mensagem que eu entendi porque estava ali só para mim.

Só de vez em quando vem o choro e eu não posso segurar: mas choro menos.

Caminho a passos largos os passos curtos que dou e mal tenho tempo de virar para o lado e sentir a poesia do que aquilo significava para mim: é como se eu estivesse me dessensibilizando.

Tenho atravessado as ruas com cuidado, o que é o mesmo que cruzar as vias sem olhar para o lado. Dá no mesmo a todo momento. Escrevi o recado com uma letra qualquer. Dobrei um papel de forma assimétrica. Amassei o papel que embrulhava o pão: é que tenho chorado menos.

Só de vez em quando vem a vontade, maior que a força contrária, e deixo-me ser: choro, mas choro menos.

Quanto a mim, choro menos: raramente vejo seu rosto em alguma parte que ainda ficou e, quando vejo, só olho. Se escrevo, nem digo nada, apenas faço o contorno das letras. Há muito tempo não leio poesia e esqueci como é deixar-se interpretar para entender o que estava escrito. Penso que os escritores não queriam dizer nada, queriam mesmo só escrever.

Quanto a mim, choro menos: pego na sua mão que foi como um sopro, olho para o seu olhar que me ensinou a ver tantas novas coisas e as mesmas de forma diferente, respiro o cheiro do seu corpo, ouço o zumbido do seu sotaque ... e, então, ligo a tv. Termina assim.

Só de vez em quando vem a vontade de chorar: meus olhos ficam pesados como se nuvens acima de mim, e dentro de mim, e fora - no mundo inteiro. Isso acontece tão pouco na vida que tenho pensado que sou forte, quando é exatamente o contrário: é que choro menos, bem menos.

Hoje em dia, choro menos: mas arrasto os ponteiros do relógio, que sequer passam devagar. Levo-os para o fim do que seria um dia, para sentir o que é acabar para começar tudo outra vez: parece uma promessa.

Enquanto isso, quanto a mim, choro menos.


9 de mar. de 2017

Longe daqui, aqui mesmo

Longe daqui era aqui mesmo.

Era um lugar que não poderia ser.

Parecia um lugar em que sempre vivera, mas que sequer havia existido.

Longe daqui, aqui mesmo: porque é o mais longe que se pode ser.

Parece o infinito: olha-se e não se vê nada. Não se parece com nenhuma observação.

Longe daqui era um aqui mesmo bem aqui, mas ali. Eu não sei se estive lá, só sei que não estou, mas sei também que estaria.

Era uma vez um lugar muito longe: aqui, aqui mesmo. E, mesmo sendo aqui, era longe de si.

E não havia ponte que ligasse, nem caminho que soubera traçar. Não existia nenhum mapa. As coordenadas descoordenavam-se.

Era um lugar sem ser: era um lugar que não era.

Longe daqui era o aqui mesmo.

16 de fev. de 2017

A Lucidez Perigosa

Eu estava ficando lúcida.
.
.
.
Era como acordar de manhã e chegar da minha janela para ver o mundo, só que era segunda-feira.

A lucidez era como uma mala que eu carregava por essa vida, mas eu só a abria e olhava de vez em quando -- quando bem queria.

Um dia era de tarde e havia pouco sol e eu fui conversar um negócio: eu pensei comigo "poxa, tem tudo para dar certo se os ingredientes do dia são esses apresentados". E deu mesmo: eu fiquei lúcida com a conversa que eu tive. Eu fiquei tao lúcida que poderia até escrever -- e é o que estou fazendo agora.

A lucidez perigosa se revela nas entrelinhas das palavras que falo - eu nunca presto atenção em como as palavras soam, apenas em como elas se apresentam. É que quase nunca escuto, apenas sempre leio.

A lucidez perigosa parecia com a gente se despindo: era como tirar uma blusa, era como tirar a franja do olho, era colocar o cabelo atrás da orelha como que pronta para sair lá fora no mundo. O nome disso era lucidez.

Um dia eu acordei de um sono do qual eu nunca tinha dormido e abri meus olhos: eu escutei tudo o que a moça tinha para me dizer. Eu também disse muito a ela -- das coisas sobre você. Ela parecia ter estudado análise do discurso, enquanto eu preocupava-me em olhar fixo para a janela e retratar tudo com a mais sincera das emoções. Mas é que eu estava ficando lúcida e, quando estou lúcida, corro o risco de parar de sentir.

Um dia a lucidez chegará de vez e eu poderei não mais escrever poemas inspirados em você, não mais lembrar da cor do seu cabelo, não mais saber o não-dia em que nasceu. E nem recontar acontecimentos banais com a empolgação de uma criança mais eu farei. E também poderei perder a sensibilidade. E até parar de escrever eu poderia. É porque nesse dia eu fiquei lúcida e vi as coisas como elas eram e não como eu achava que eram.

Por fim, a lucidez perigosa me pegou: quem é "legal" (e é também todos os adjetivos bons que a sua voz fala e o seu coração pensa que entende) sai sem se despedir?

Despedir-se não custa nada: basta um tchau.

(e eu te direi adeus)

14 de fev. de 2017

Formosa

Como era formosa: a começar pelas mãos.

Era formosa nos passos, mas não só apenas no jeito de andar. Gostávamos dos caminhos que ela escolhia passar e observávamos à distância.

Era formosa no jeito de sorrir, porque só o fazia de maneira genuína e quase sempre, ainda que todo o resto do tempo fosse uma pessoa séria.

Formosa em seus cabelos, com longas mechas cor-não-sei-do-quê, e formosa em seu olhar. Era formosa até no que via: viu o menino que lembrava-lhe os campos de concentração, mas ainda assim ele despertava-lhe ternura; viu os ladrilhos das casas; viu as oportunidades que ora batiam à porta; viu o chegar e o partir; viu tudo in-between.

Formosa no jeito de pensar: ora pensava muito, ora não queria pensar nada. Mas não conseguia: confabulava as maneiras de fazer as coisas da vida, pensava no canto esquecido do armário, refletia sobre as relações econômicas de trabalho, dialogava consigo sobre a queda da cortina de ferro e as consequências mais atuais do que nunca -- ah, há tanto para se viver, ainda que já muito tenha sido vivido!

Formosa no jeito de falar: sua voz parecia nunca envelhecer, soava como carinho recebido no cabelo, era doce como mouse de maracujá bem azedo - é que ela destetava soar tão meiga e gostava quando pegava um resfriado e ficava rouca.

"Gente, eu sou brava" - bradava ela, numa tentativa de fazer-se quem é. Mas todos bradavam de volta: "és meiga! és a mais sincera! és a mais amiga! tome o seu coração mole!". E, então, ela voltava para casa cabisbaixa, porque contra a voz popular ela precisaria levantar um cartaz e ser lida. Era isso o que ela era: tudo isso e em todo lugar. Mas, acima de tudo, era formosa.

Era formosa no jeito de ser: descobriu isso no dia que viu o mais formoso dos seres à sua frente, como um espelho. É que a gente atrai o que é, não é mesmo? Era formosa e nem sabia disso, saía por aí caminhando sem rumo e encontrando pessoas no caminho -- e alguma delas ela levava consigo.

Um dia formou-se formosa e foi formosa em toda a sua forma. Ela era ela do topo da cabeça aos dedos do pé, embora jurasse de pé junto que ia sendo apenas ela mesma.

13 de fev. de 2017

Assim Vivíamos

Quando eu pegar os papéis, formulários a ser preenchidos, canetas e ter a história da minha vida na mente, pronta para ser escrita em letra legível e linguagem formal, vou lembrar-me daquele espaço de tempo, em que "assim vivíamos".

Antes de conhecer você eu já havia me tornado: eu era quem eu era, mas hoje pergunto-me quem sou.

Eu já havia estudado e me graduado, ganhando um diploma que me tomou (ou acrescentou) quatro anos. E eu estava quase acabando uma segunda graduação, que também me havia tomado (ou acrescentado) quatro anos. Eu os havia escolhido sem antes existir você: de maneira alguma poderia haver qualquer influência.

No entanto, ultimamente, sempre que penso em estudar mais, que é o que estou sempre fazendo, fico irritada, ou perdida, pois acabo vendo um pedacinho de você nas coisas. Eu bem que gostaria daquilo, ou daquilo outro, ou daquilo lá - mas aí vem você e me põe em dúvida: gosto apesar de você ou por causa de você?

Sei que, se eu sentir o vento frio da noite na janela do meu quarto e não racionalizar aquele momento, poderei ser levada para um instante anterior. Vou sentir o que senti e passar pelas mesmas emoções experimentadas. Vou até ser quem fui um dia - o que não tem problema, porque eu era incrível - mas é que hoje eu sou mais incrível ainda.

Sei que por aqueles corredores de cor amarela ainda verei o rastro dos seus passos, como seu fosse possível preservar a poeira cósmica dos seus sapatos. Vou entrar nas salas sem prestar atenção nos números, mas saberei o lugar exato em que você se sentou. No quadro negro, ainda lerei possíveis letras que formaram palavras e você leu, aprendeu, anotou. Tudo isso é porque assim vivíamos.

Se eu um dia voltar a caminhar por aquele caminho, sei que vou levar você. Não tem jeito. Mas eu queria levar apenas metade de ti, para que a outra metade minha ainda fosse eu. E eu queria levar o dia de hoje, o modo que vivemos, e quem sabe o amanhã, e o modo em que viveremos - mas não o modo como vivíamos.

Isso, porque o modo como vivíamos já foi vivido e não existe mais -- e isso é o mais bonito: porque, antes de deixar de existir, ele tornou-se, e, quando se torna, se é. Ser, apenas. O que é não tem tempo, razao ou circunstancia: é, apenas. Que não esqueçamos "ser". Mesmo o que já fomos.

Assim vivíamos, e o jeito de viver que era a vida naquele momento ficou em alguma gaveta da história. Vez ou outra abro-a por engano, mas fecho-a com ternura e o sorriso de quem sente-se grata pelo que viveu -- viver é sempre ganhar, não há como perder.

Assim vivíamos...

9 de fev. de 2017

Onde estivestes de noite

Onde estivestes de noite? - me perguntaram e eu respondi que estive aí.

Estive aí não apenas essa noite, mas ontem, que também foi outra noite. E estivera eu aí também muitas outras noites. E, antes, estivera eu de dia, de tarde, de noite, de madrugada, de manhã - e já era dia novamente.

Desde que vim embora, visito-a à noite: é sempre assim quando fecho os olhos. A gente não escolhe para onde vai quando para de pensar, porque, quando não pensamos, age o coração.

Muitas noites em meus sonhos estive aí, e na manhã seguinte dava-me conta de que, na verdade, eu estava aqui. Fechei os olhos de saudade e fui estar no lugar onde estou.

Muitas noites estive aí e, por isso, vivi. Vivo com você dentro do peito, e vou vivendo enquanto te levo comigo.

Onde estivestes de noite? - se me perguntarem quando eu acordei, vou fechar os olhos de saudade e dizer: ali. Ali é do lado de cá da ponte, porque nunca atravessei. É no bairro de língua parecida com a minha, e de cultura e de comida. Ali é aquele ônibus que vagueia pela cidade e eu nem ligo para o rumo conquanto que o caminho seja os muros da cidade. É a padaria no fim da rua, bem na esquina, que parecia tarde do dia na casa dos meus pais na minha infância. Ali é o lado de cá da cerca, porque não pude entrar na Estação. É o dormitório, e o outro dormitório, e os corredores com cheiro de comida indiana - isso estava fora de lugar. Ali são as ruas abandonadas, e as casas em que atearam fogo, e também os prédios vazios - tudo cheio de história a captar minha atenção. Ali é onde encontrei Sugar Man - o mais doce dos homens a pisar na Terra. Ali é onde explodiram fogos de artifício em meu coração e onde meus olhos pararam de piscar para encarar a Beleza da criação. Ali, logo ali. -- Se me perguntares "onde estivestes de noite?", eu responderei: ali.

Eu ontem acordei sonhando com ela, que é onde eu estive de noite. A você, cidade do fim da linha mas do primeiro lugar no pódio das grandezas, dedico os passos que dou sem sair da cama, quando estou dormindo a sonhar contigo. E a admiração e pequenez que sinto ao olhar a sua grandiosidade: seus prédios, suas vidas, seus habitantes e tudo o que você me permitiu viver.

Parece que estou sendo visitada, mas fui eu que fui visitar você.

Aquela cidade é minha, e é ali que eu estivera de noite.

3 de fev. de 2017

A descoberta do mundo

A descoberta do mundo deu-se assim: parecia que eu estava apenas descobrindo-o.

Descobri-o de duas formas:

1- tirei sua vestimenta, a cor que o cobria, descobrindo-o e deixando-o descoberto.

2- fui por ele passear e, enquanto vivia minhas descobertas, descobria-o. Descobertas com sabor de aventura.

Oh, don't you just love the Portuguese language?! Tenho que apertar os olhos para perseguir a linha de raciocínio, ou me perderei em minhas próprias palavras. Descobrir é então duas coisas: é descoberta, que é como achar-encontrar, e é des-cobrir, que é o contrário de cobrir.

A descoberta do mundo deu-se assim: na frente dos meus olhos. Um dia, caiu uma capa e lá atrás estava ele, a seu modo: o mundo.

Mas, ainda que o mundo fosse a seu modo, eu ainda o fazia meu. Todo mundo tem seu jeito, todo mundo dá um jeito, todo mundo faz um mundo e o mundo já não é mais de si.

A descoberta do mundo,  do jeito que a vejo frente aos meus olhos nesse instante agora, parece assim:
uma foto cheia de árvores em tom verde-azulado, mas o fundo é marrom e a vida no leste é cinza; o lápis com que escrevo a reportagem é vermelho, mas a tinta é azul; as palavras que você vê e lê têm gosto de história mundial; a história mundial que perpassa as linhas escritas são relatos pessoais.

Então a descoberta do mundo era assim: cada um tinha uma história para contar. Resta-nos, então, ouvir, narrar, relatar - escrever.

E assim fez-se o mundo: no oitavo dia, às narrações via escrita, por meio das mãos de uma coadjuvante, com o olhar juvenil, em meio a preposições emaranhadas nas frases, em sua língua-mãe e numa língua que-não-era-sua-mas-tomara-posse, sob olhares atentos e corações batendo.

Era a descoberta do mundo: descobriu.

22 de jan. de 2017

Seu rosto, por toda parte

Vejo seu rosto na face dos que não são como você: ah, eles me lembram tanto o modo como tu és!

Vejo seu rosto no modo como andam, como pegam as coisas, como viram de lado, como assobiam e como conversam. Percebo no modo como piscam os olhos e para que canto da boca lhes cai o sorriso. Parece que estou o tempo todo a analisar e o tempo todo sou avisada de quem eles não são como você. Consequentemente, sou lembrada de como tu és. E, então, vejo seu rosto por toda parte. 

Vejo seu rosto por toda parte: nos murais espalhados por muros ao redor do mundo, pelos caminhos mais bonitos que caminho, nas tardes frias e vazias, na manhã perpetuada na memória pelos raios de sol. Vejo seu rosto, fecho os olhos. Se fecho os olhos, vejo o seu rosto.

Seu rosto está por toda parte: ainda que eu não me lembre como são seus traços e os detalhes que lhe fazem ser quem tu és. 

Seu rosto está por toda parte: ainda que eu não saiba como tu aparentas hoje. 

Ainda assim, coloco todas as minhas apostas na certeza do meu coração de que você ainda é um dos rostos mais bonitos que já pisou na Terra. Felizes aqueles que contemplaram mais que seu lindo rosto: esses lhe viram por dentro e sabem da beleza maior que habita dentro de ti. 

Seu rosto por toda parte e o mundo torna-se um lugar melhor. Se há seu rosto por toda parte, debruço-me sobre ternura. Teu rosto por toda parte e eu entro em um ônibus cujo destino nem sei. 

Teu rosto por toda parte, até em meus sonhos. E, novamente, quando acordo. Acho que o rosto das pessoas que nos marcam não estão mais em nossos olhos e no que eles projetam: passam a morar no coração. 

21 de jan. de 2017

Cada dia é uma vida inteira

Cada dia parece que vai demorar a passar. Mas, quando chega ao fim, que é apenas o começo da noite, já passou.

O dia nasce assim: vem na hora que ele quer, mesmo que estejamos dormindo. Vai vivendo cada minuto que lhe é seu de direito, enquanto estamos apenas acordando. Segue seu rumo, pega sua trilha, define sua direção e segue seguindo.

Parece até que o dia só anda para frente - mas, espera, chega o fim da tarde e eu quero voltar lá pela manhã, que foi quando vi os olhos teus ao acordar. Mas já fora a hora e, se tens sorte, o dia amanhã se repete. Se tens sorte.

Cada dia começa de um jeito, embora todos se iniciem pelo amanhecer dos começos. Acho que é por isso que dizem que todo dia é um hora de começar de novo. Mas, se começamos novamente todo novo dia, não estaríamos repetindo sempre a mesma coisa? Mas, e as vezes em que não precisamos começar, mas continuar o que estávamos fazendo? Ainda assim o dia acaba e nasce outra vez? É mesmo um novo dia? Quem sabe não precisaríamos de uns dois, três dias do mesmo dia para fazer a coisa que não deu tempo de fazer na extensão das suas horas, diazinho?

Um novo dia na vida é como uma vida inteira: prestes a se revelar. Parece que fica à nossa frente nos pedindo: viva-me. Cada dia é uma vida inteira e dura o comprimento que ele tem. Vive-se dentro de um espectro e, por isso, cabe a nós fazer dele o mais incrível e inesquecível possível. Há quem já tenha tido uns dias assim, há quem já tenha tido uma vida inteira de dias, e há quem espera para experimentar. Mas, que não se esqueçam: cada dia é uma vida inteira. Não é vez de deixar passar.

E você, tem deixado passar a sua vez?

Que não se esqueçam: cada dia é uma vida inteira.

20 de jan. de 2017

10 coisas que odeio em você

Amanhã, sábado de manhã, falarei sobre 10 coisas que odeio em você. Mas eu não odeio nada. Nadinha. Nem a ponta do dedo em que está a sua unha que eu nunca notei eu odeio. Nem nada:

"Odeio sua presença: não por fazê-lo ser, mas por mostrar o quanto você não está aqui. Odeio seus olhos claros que desviaram os meus de seu próprio caminho, e, desde então, passaram a olhar você. Odeio o modo como caminha para um lugar que não é. Odeio o calor das suas mãos nos dias mais frios, pois estes são os que jamais esquentam. Odeio seus longos cabelos que lembram todos os girassóis do mundo o tempo todo e em todo lugar. Odeio o modo como escreve poesia ao falar do óbvio, sem nem saber, e odeio mais ainda a sua letra, pois quero encontrar significado - e tentar entendê-la é como desvendar o mistério da criação. Odeio cada marca em seu rosto, pois não são meros acidentes, mas os detalhes finais da obra do Artista: não foram colocadas ali por acaso, mas pensadas a pinceladas só para eu olhar e não tirar os olhos dali nunca. Odeio seus braços, que abraçam o mundo e parecem guias numa tarde de chuva vazia: é como nunca estar só. Odeio todos os barulhos que faz: sua fala, seu sorriso e o som da sua voz, porque ressoam o infinito intangível e parecem um eco eterno, distante, intocável às minhas mãos".

-Márcia

9 de jan. de 2017

Adeus, até sempre

Adeus, até sempre. Digo-lhe com os olhos para baixo. É que não ouso encarar os olhos seus - seus olhos foram feitos no primeiro dia da criação, seus olhos foram a coisa primeira a ser feita no mundo. Os olhos seus que os meus tanto olharam para ver se via.

Adeus, até sempre. Digo-lhe com um aperto no peito e mãos que lhe deixam ir. Eu sempre quis dizer-lhe adeus mas sempre tive medo. Mas guardá-lo comigo, aonde quer que eu vou, é ainda mais aterrorizante e às vezes corta a alma como se você fosse um dia frio em uma dessas esquinas da vida.

"Adeus, até sempre" parece dois lugares: um, aquele lugar que nunca existiu. Para onde irás e cairá no esquecimento. O lugar onde estão as coisas perdidas. O lugar em que apago a luz. O momento que nunca visito. Uma leve certeza que soa como dúvida.

O outro lugar é aquele de onde viestes e de onde nunca saíras. Para onde sempre irás. O lugar onde moram as coisas repentinas, verdadeiras e formadoras dos dias de primavera - eu nunca penso na primavera, eu sempre gosto mais do outono e do inverno, mas você é como flor que aflora, é como reflexo de raio de sol que bate nos jardins do mundo, é o que reluz dentro de mim e ilumina o caminho à frente. É o que me paralisou, mas o que também me guia - para pegar o outro caminho, para trilhar o caminho contrário, para me encontrar.

Adeus, até sempre, e parece que tudo nunca aconteceu. Adeus, até sempre, e parece que foi tudo logo ali e logo agora. Mas foi ontem, é hoje, será amanhã. É.

Adeus, até sempre: solto-lhe o meu sussurro de saudades, miro a janela para poder olhar para o nada. Tudo é desculpa para não lhe encarar: é que seus olhos foram feitos no primeiro dia da criação do mundo. Um dia eu olhei para eles e nunca mais quis parar de olhar. Meu deus, era tudo perfeição. Quem fizera aquilo? Quem carregara aquilo, era você? E você, o que via com eles, o que via com seus mais lindos olhos? Via-me diante de ti, a te olhar-te?

Adeus, até sempre. Vistes muito mais que eu de uma maneira clara porque meu jeito foi sempre complicar as coisas. Mas no mundo não há culpa: há alguns dias descobri que eu também fui feita em um desses primeiros dias da criação, quando o dono do mundo e fazedor de todas as coisas ainda não estava cansado e havia matéria prima de sobra.

Adeus, até sempre. Deixo-lhe ir, vou-me também - mas até sempre. Até sempre.