28 de abr. de 2017

Por quem os sinos se dobram

Os sinos se dobram. Quando não se curvam, dobro eu mesma eles.

Os sinos se dobram na curvatura da vida, na esquina da rua, só não me lembro a hora e o dia.

Por quem os sinos se dobram? Os sinos se dobram para ele. Os sinos dourados.

Pensa a ti mesmo que tens dobrado os sinos para uma pessoa que não foi, para uma pessoa que não conhece, para uma pessoa a se desvendar que nunca se revelou, para uma pessoa que sequer é.

O pior male a acometer uma pessoa é o malo de não ser.

"Por quem os sinos se dobram?", perguntei-me eu mesma a mim.

Os sinos fazem barulho, mas quando uma pessoa não fala, não há um ruído sequer. Os sinos são duros e frios. Os sinos ficam no alto, a uma distância que não se consegue medir. E, mesmo assim, os sinos se dobram... Argh.

Eu hoje parei para me perguntar por quem os sinos se dobram. Olhei para aquela pessoa que não digo o nome só para não nomear, mas que todas as características revelam o ti: o ti é você, é o ele, é o outro, mas não sou eu. É Ele, dourado, da cor do sol, reluz como ouro, mas não vale 1 Euro.

Uma moça, que é uma senhora, despertou em mim a pergunta do ser: "Márcia, por quem os sinos se dobram? Por quem tens dobrado os sinos?". E eu olhei. E, quando olhei, eu vi. Não na hora, porque na hora eu estou pensando eu outra coisa ou lutando para não se abalar. Mas, no fim do dia, quando já era quase amanhã, e eu dormi e acordei, eu percebi: afinal, quem é aquela pessoa por quem os sinos se dobram?

Não o conheci de verdade, porque nunca me deixou aproximar. Hoje, conheço-o menos ainda. Sabe-se lá quem é. Talvez a mãe, o pai, a irmã, a outra irmã e todos os outros irmãos o conheçam. E os avós, em parte. E as aulas de história - acho que é nas aulas de história e das guerras mundiais que mais o conheço. Porque, nos personagens históricos, o identifico. O ano era 1941.

Aquela pessoa, que é Ele, eu não sei quem é.

18 de abr. de 2017

A posteridade nos julgará

A posteridade nos julgará no dia em que ela for embora. E enquanto viver. E também no dia em que ela voltar, julgará.

A posteridade tem unhas e dentes. Tem olhos oblíquos. Tem traços familiares e descende de uma família. É posterior, mas nunca em cima, ainda que sobre - sobre a cabeça de todos nós.

A posteridade nos julgará e, neste dia, nos olharemos com vistas desconcertadas. Dá vontade de correr e sentar no sofá. Balançar os pés como uma criança sem sombras de dúvida. Ver o carro entrar na garagem.

O dia em que a posteridade nos julgará é agora. Está sendo neste momento. E foi também no momento anterior, e no posterior, e no seguinte. Parece que não tem tempo: dura o dia inteiro. Parece que não tem duração: mal acaba, já começou de novo.

A posteridade é como andar em círculos. É como nos pegar pelas mãos, mas nunca para guiar. É um entardecer frio de tão quente, e eu preferiria que fosse menos 20 graus. Eu estaria no lugar certo, e não haveria posteridade, nem anterioridade, nem invenção de palavra nenhuma, nem descrição das relações que os humanos deveriam ter, nem o modo como vivem os dias, nem os pensamentos que lhes passam pela cabeça: porque só haveria tempo para ser e viver.

Um dia a posteridade nos julgará, e eu a olharei de frente.