16 de fev. de 2017

A Lucidez Perigosa

Eu estava ficando lúcida.
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Era como acordar de manhã e chegar da minha janela para ver o mundo, só que era segunda-feira.

A lucidez era como uma mala que eu carregava por essa vida, mas eu só a abria e olhava de vez em quando -- quando bem queria.

Um dia era de tarde e havia pouco sol e eu fui conversar um negócio: eu pensei comigo "poxa, tem tudo para dar certo se os ingredientes do dia são esses apresentados". E deu mesmo: eu fiquei lúcida com a conversa que eu tive. Eu fiquei tao lúcida que poderia até escrever -- e é o que estou fazendo agora.

A lucidez perigosa se revela nas entrelinhas das palavras que falo - eu nunca presto atenção em como as palavras soam, apenas em como elas se apresentam. É que quase nunca escuto, apenas sempre leio.

A lucidez perigosa parecia com a gente se despindo: era como tirar uma blusa, era como tirar a franja do olho, era colocar o cabelo atrás da orelha como que pronta para sair lá fora no mundo. O nome disso era lucidez.

Um dia eu acordei de um sono do qual eu nunca tinha dormido e abri meus olhos: eu escutei tudo o que a moça tinha para me dizer. Eu também disse muito a ela -- das coisas sobre você. Ela parecia ter estudado análise do discurso, enquanto eu preocupava-me em olhar fixo para a janela e retratar tudo com a mais sincera das emoções. Mas é que eu estava ficando lúcida e, quando estou lúcida, corro o risco de parar de sentir.

Um dia a lucidez chegará de vez e eu poderei não mais escrever poemas inspirados em você, não mais lembrar da cor do seu cabelo, não mais saber o não-dia em que nasceu. E nem recontar acontecimentos banais com a empolgação de uma criança mais eu farei. E também poderei perder a sensibilidade. E até parar de escrever eu poderia. É porque nesse dia eu fiquei lúcida e vi as coisas como elas eram e não como eu achava que eram.

Por fim, a lucidez perigosa me pegou: quem é "legal" (e é também todos os adjetivos bons que a sua voz fala e o seu coração pensa que entende) sai sem se despedir?

Despedir-se não custa nada: basta um tchau.

(e eu te direi adeus)

14 de fev. de 2017

Formosa

Como era formosa: a começar pelas mãos.

Era formosa nos passos, mas não só apenas no jeito de andar. Gostávamos dos caminhos que ela escolhia passar e observávamos à distância.

Era formosa no jeito de sorrir, porque só o fazia de maneira genuína e quase sempre, ainda que todo o resto do tempo fosse uma pessoa séria.

Formosa em seus cabelos, com longas mechas cor-não-sei-do-quê, e formosa em seu olhar. Era formosa até no que via: viu o menino que lembrava-lhe os campos de concentração, mas ainda assim ele despertava-lhe ternura; viu os ladrilhos das casas; viu as oportunidades que ora batiam à porta; viu o chegar e o partir; viu tudo in-between.

Formosa no jeito de pensar: ora pensava muito, ora não queria pensar nada. Mas não conseguia: confabulava as maneiras de fazer as coisas da vida, pensava no canto esquecido do armário, refletia sobre as relações econômicas de trabalho, dialogava consigo sobre a queda da cortina de ferro e as consequências mais atuais do que nunca -- ah, há tanto para se viver, ainda que já muito tenha sido vivido!

Formosa no jeito de falar: sua voz parecia nunca envelhecer, soava como carinho recebido no cabelo, era doce como mouse de maracujá bem azedo - é que ela destetava soar tão meiga e gostava quando pegava um resfriado e ficava rouca.

"Gente, eu sou brava" - bradava ela, numa tentativa de fazer-se quem é. Mas todos bradavam de volta: "és meiga! és a mais sincera! és a mais amiga! tome o seu coração mole!". E, então, ela voltava para casa cabisbaixa, porque contra a voz popular ela precisaria levantar um cartaz e ser lida. Era isso o que ela era: tudo isso e em todo lugar. Mas, acima de tudo, era formosa.

Era formosa no jeito de ser: descobriu isso no dia que viu o mais formoso dos seres à sua frente, como um espelho. É que a gente atrai o que é, não é mesmo? Era formosa e nem sabia disso, saía por aí caminhando sem rumo e encontrando pessoas no caminho -- e alguma delas ela levava consigo.

Um dia formou-se formosa e foi formosa em toda a sua forma. Ela era ela do topo da cabeça aos dedos do pé, embora jurasse de pé junto que ia sendo apenas ela mesma.

13 de fev. de 2017

Assim Vivíamos

Quando eu pegar os papéis, formulários a ser preenchidos, canetas e ter a história da minha vida na mente, pronta para ser escrita em letra legível e linguagem formal, vou lembrar-me daquele espaço de tempo, em que "assim vivíamos".

Antes de conhecer você eu já havia me tornado: eu era quem eu era, mas hoje pergunto-me quem sou.

Eu já havia estudado e me graduado, ganhando um diploma que me tomou (ou acrescentou) quatro anos. E eu estava quase acabando uma segunda graduação, que também me havia tomado (ou acrescentado) quatro anos. Eu os havia escolhido sem antes existir você: de maneira alguma poderia haver qualquer influência.

No entanto, ultimamente, sempre que penso em estudar mais, que é o que estou sempre fazendo, fico irritada, ou perdida, pois acabo vendo um pedacinho de você nas coisas. Eu bem que gostaria daquilo, ou daquilo outro, ou daquilo lá - mas aí vem você e me põe em dúvida: gosto apesar de você ou por causa de você?

Sei que, se eu sentir o vento frio da noite na janela do meu quarto e não racionalizar aquele momento, poderei ser levada para um instante anterior. Vou sentir o que senti e passar pelas mesmas emoções experimentadas. Vou até ser quem fui um dia - o que não tem problema, porque eu era incrível - mas é que hoje eu sou mais incrível ainda.

Sei que por aqueles corredores de cor amarela ainda verei o rastro dos seus passos, como seu fosse possível preservar a poeira cósmica dos seus sapatos. Vou entrar nas salas sem prestar atenção nos números, mas saberei o lugar exato em que você se sentou. No quadro negro, ainda lerei possíveis letras que formaram palavras e você leu, aprendeu, anotou. Tudo isso é porque assim vivíamos.

Se eu um dia voltar a caminhar por aquele caminho, sei que vou levar você. Não tem jeito. Mas eu queria levar apenas metade de ti, para que a outra metade minha ainda fosse eu. E eu queria levar o dia de hoje, o modo que vivemos, e quem sabe o amanhã, e o modo em que viveremos - mas não o modo como vivíamos.

Isso, porque o modo como vivíamos já foi vivido e não existe mais -- e isso é o mais bonito: porque, antes de deixar de existir, ele tornou-se, e, quando se torna, se é. Ser, apenas. O que é não tem tempo, razao ou circunstancia: é, apenas. Que não esqueçamos "ser". Mesmo o que já fomos.

Assim vivíamos, e o jeito de viver que era a vida naquele momento ficou em alguma gaveta da história. Vez ou outra abro-a por engano, mas fecho-a com ternura e o sorriso de quem sente-se grata pelo que viveu -- viver é sempre ganhar, não há como perder.

Assim vivíamos...

9 de fev. de 2017

Onde estivestes de noite

Onde estivestes de noite? - me perguntaram e eu respondi que estive aí.

Estive aí não apenas essa noite, mas ontem, que também foi outra noite. E estivera eu aí também muitas outras noites. E, antes, estivera eu de dia, de tarde, de noite, de madrugada, de manhã - e já era dia novamente.

Desde que vim embora, visito-a à noite: é sempre assim quando fecho os olhos. A gente não escolhe para onde vai quando para de pensar, porque, quando não pensamos, age o coração.

Muitas noites em meus sonhos estive aí, e na manhã seguinte dava-me conta de que, na verdade, eu estava aqui. Fechei os olhos de saudade e fui estar no lugar onde estou.

Muitas noites estive aí e, por isso, vivi. Vivo com você dentro do peito, e vou vivendo enquanto te levo comigo.

Onde estivestes de noite? - se me perguntarem quando eu acordei, vou fechar os olhos de saudade e dizer: ali. Ali é do lado de cá da ponte, porque nunca atravessei. É no bairro de língua parecida com a minha, e de cultura e de comida. Ali é aquele ônibus que vagueia pela cidade e eu nem ligo para o rumo conquanto que o caminho seja os muros da cidade. É a padaria no fim da rua, bem na esquina, que parecia tarde do dia na casa dos meus pais na minha infância. Ali é o lado de cá da cerca, porque não pude entrar na Estação. É o dormitório, e o outro dormitório, e os corredores com cheiro de comida indiana - isso estava fora de lugar. Ali são as ruas abandonadas, e as casas em que atearam fogo, e também os prédios vazios - tudo cheio de história a captar minha atenção. Ali é onde encontrei Sugar Man - o mais doce dos homens a pisar na Terra. Ali é onde explodiram fogos de artifício em meu coração e onde meus olhos pararam de piscar para encarar a Beleza da criação. Ali, logo ali. -- Se me perguntares "onde estivestes de noite?", eu responderei: ali.

Eu ontem acordei sonhando com ela, que é onde eu estive de noite. A você, cidade do fim da linha mas do primeiro lugar no pódio das grandezas, dedico os passos que dou sem sair da cama, quando estou dormindo a sonhar contigo. E a admiração e pequenez que sinto ao olhar a sua grandiosidade: seus prédios, suas vidas, seus habitantes e tudo o que você me permitiu viver.

Parece que estou sendo visitada, mas fui eu que fui visitar você.

Aquela cidade é minha, e é ali que eu estivera de noite.

3 de fev. de 2017

A descoberta do mundo

A descoberta do mundo deu-se assim: parecia que eu estava apenas descobrindo-o.

Descobri-o de duas formas:

1- tirei sua vestimenta, a cor que o cobria, descobrindo-o e deixando-o descoberto.

2- fui por ele passear e, enquanto vivia minhas descobertas, descobria-o. Descobertas com sabor de aventura.

Oh, don't you just love the Portuguese language?! Tenho que apertar os olhos para perseguir a linha de raciocínio, ou me perderei em minhas próprias palavras. Descobrir é então duas coisas: é descoberta, que é como achar-encontrar, e é des-cobrir, que é o contrário de cobrir.

A descoberta do mundo deu-se assim: na frente dos meus olhos. Um dia, caiu uma capa e lá atrás estava ele, a seu modo: o mundo.

Mas, ainda que o mundo fosse a seu modo, eu ainda o fazia meu. Todo mundo tem seu jeito, todo mundo dá um jeito, todo mundo faz um mundo e o mundo já não é mais de si.

A descoberta do mundo,  do jeito que a vejo frente aos meus olhos nesse instante agora, parece assim:
uma foto cheia de árvores em tom verde-azulado, mas o fundo é marrom e a vida no leste é cinza; o lápis com que escrevo a reportagem é vermelho, mas a tinta é azul; as palavras que você vê e lê têm gosto de história mundial; a história mundial que perpassa as linhas escritas são relatos pessoais.

Então a descoberta do mundo era assim: cada um tinha uma história para contar. Resta-nos, então, ouvir, narrar, relatar - escrever.

E assim fez-se o mundo: no oitavo dia, às narrações via escrita, por meio das mãos de uma coadjuvante, com o olhar juvenil, em meio a preposições emaranhadas nas frases, em sua língua-mãe e numa língua que-não-era-sua-mas-tomara-posse, sob olhares atentos e corações batendo.

Era a descoberta do mundo: descobriu.