25 de nov. de 2018

Vestígios

Fico guardando os traços pelos cantos.

Fico guardando os cantos como se precisassem ser olhados.

Fico acendendo a luz e mantendo tudo o que é seu: há letras com palavras escritas no bloco na gaveta da sala, na garrafa de água na geladeira e na vasilha da cozinha.

Tua letra é curvada, quase gordinha.

Tua letra também é sua.

E o bloco anotado, com o nome de não-sei-quem na sala, tem sempre a primeira página ali, por estar: eu a movo para um lado e sempre só escrevo na próxima. Não posso te apagar.

Há também os livros que são teus. Não muitos (eu não conheço ninguém que tenha mais livros do que eu), mas sempre seus. Eu olho a capa e já logo vejo: é nome estrangeiro, é palavra que eu nem sei ler. Teríamos mesmo, nós duas, o mesmo sangue?

Gosto de guardar os detalhes de você aqui comigo pela casa. Parece que daqui você nunca saiu e é como se fizesse parte da minha vida ainda. É como se você existisse nos meus dias, quando já se foi.

Chego a olhar para mim com um respeito que soa quase como um amor: abro a geladeira vestida de uma blusa amarela, que eu nunca compraria, mas que você me deu porque era sua e você não quis mais; encosto na garrafa com cuidado, porque tem seu nome; sirvo-me daquela água que bebo; e ligeiramente me olho com rabo de olho: é tudo muito tão rápido (assim, nesta intensidade), uma linha entre eu-e-você, como um você-e-eu.

Eu, que te olho daqui para aí tão longe, te vejo. Eu penso nessas coisas boas todas que você as tem e as desejo muito.

E, então, como um sopro do coração eu logo escuto (é quase um recordar): eu vim primeiro.

Se és assim, é porque me puxou: você é que se parece comigo.