26 de nov. de 2017

Buda e Peste formam um só lugar: Budapeste

Aquele era um lugar como outro qualquer: só que diferente.

Era mais perto, só que mais longe. Era também mais monocromático: sim, Budapeste era de uma cor só, e a sua cor era amarelo. Todos os lugares eram amarelos, até os cantinhos eram amarelos, e as esquinas eram amarelas ou sem cor nenhuma. Se havia cor, era eu quem colocava. Eu.

Budapeste era como lugar nenhum: até hoje não acredito que eu tenha chegado até lá. Que eu tenha decido no aeroporto, atravessado a porta, entrado em um táxi e atravessado a cidade à noite, me sentindo em um livro de história no capítulo a partir da segunda guerra mundial - e depois.

Os dias que passaram me trouxeram a saudade de quem eu tinha sido, das pessoas que cruzaram o meu caminho, das que tem estado aqui até hoje, dos lugares escondidos. Do caderno no qual eu escrevia à beira do Danúbio, de capa listrada azul claro, que custou 0,50 centavos. Budapeste era tao barata e eu era milionária, como sempre fui, só que mais, só que no instante agora, naquele momento.

Quando Budapeste passa bem à minha frente, sinto saudade do medo que eu sentia; da língua que, para mim, era xingada; das linhas de metrô que me deixavam perdida no pensar e nas cores, mas me levavam aos lugares; dos passeios com as pessoas que me levavam pela mão; das comidas e sorvetes baratos; das passagens de trem, ônibus, avião a preços irrisórios; da escola de dança na esquina da minha casa, que mais parecia um edifício de tortura praticada pelo governo; da família de ciganos que se mudou para o bairro e chocou o restante da população; do bairro VIII, o mais temido e, por isso, o que mais despertava o meu interesse; do exagero das pessoas ao contar suas histórias; do mau humor estampado no rosto das pessoas e eu, na doçura de ser quem sou; as janelas que se fechavam até nas mínimas frechas e fazia qualquer quarto parecer sala de cinema no meio da tarde; dos passos sem rumo; das árvores com formatos estranhos; de só saber a sigla para as ruas; do parque ao lado e ao fim da rua e logo à frente e em todo lugar; o "melhor bolo da Hungria" que, na verdade, não tinha gosto de nada; da casa das pessoas; das barracas nas ruas; do alívio de encontrar uma padaria; das pessoas que sorriam para mim sem dentes e eu ficava horrorizada, mas sorria de volta, porque sou um amor de pessoa com dentes lindos, brancos e perfeitos, ainda mais na Hungria; de nunca comer nada porque eu achava tudo gorduroso demais; de não comer nada porque eu só sabia cozinhar macarrão; do pão com molho e presunto que, de repente, virou a coisa mais gostosa que eu conhecia; dos infinitos salames que colocaram na minha geladeira e eu nunca comi; da janela que ia do teto ao chão e me fazia sentir medo à noite; do armário embutido no fim da cozinha que era a travessia para outro mundo; do gato que sempre vinha me visitar; de pendurar roupa no varal e morrer vergonha do meu vizinho ver; dos jardineiros mexicanos que eram, no máximo, ciganos; das falcatruas do governo; das amigas que eu fiz; dos amores por quem me apaixonei, vivi e trouxe comigo; da catedral ao fim da rua com suas torres onipotentes (não é bem essa a palavra); de comer cheesecake em qualquer café; dos pães doces que eram bonitos e gostosos, mas me preocupavam por serem de farinha branca; das bicicletas; de caminhar o dia inteiro; da praça dos drogados; do homem que escondia um rato dentro de suas roupas; dos ônibus da época da união soviética que ainda rodavam pelo centro; de correr de madrugada até chegar no meu portão, quando eu voltava sozinha para casa; das bebidas baratas que eu nem bebia; de passar na frente ao cemitério que um dia eu iria visitar; das construções na rua que só acrescentavam àquela confusão toda; dos olhares estrangeiros; de nunca saber em qual entrada do metrô entrar, nem em qual saída sair; de ir ao supermercado e não entender nada; de dividir a chave e ficar presa do lado de fora de casa; de ir comer hambúrguer no meio da semana, de um dia qualquer que era dia especial só porque existíamos; de planejar viagens que, antigamente, pareciam uma excursão para outro planeta; de ouvir as pessoas falarem e contarem os casos de sua vida quando, na verdade, eu só queria ficar ali, sozinha, olhando e sendo; de como estacionavam os carros no passeio e eu achava um absurdo; de comprar chocolate só às sextas-feiras; de tomar sorvete de baunilha que me dava dor de barriga; de ir ao Aldi e achar tudo barato; de toda rua parecer a última parada da civilização; de infinitas lindas pontes que cruzávamos sem parar; de sair à noite para dançar e congelar de frio, querendo só voltar para casa; da pizza de madrugada que era quase de graça; das igrejas ortodoxas nas quais me aventurava e onde me mandavam usar véu sobre os meus cabelos; da revista de graça em inglês, que era a única coisa possível de ler além dos livros que trouxe comigo; de ser amiga dos amigos das minhas amigas; dos convites inusitados; da coragem de ser quem é.

Nenhum comentário: