Você se senta logo à minha frente: desta vez você não está indo, nem está chegando, não está com pressa, não se esconde nem se despede - você senta logo à minha frente.
Ali está a mesa e, na ponta, você se senta logo à minha frente.
Eu olho você e olhar você é como te ver: eu te vejo outra vez. Eu te vejo mais uma vez, e não apenas uma vez somente.
Você se senta logo à minha frente com um sorriso largo. É isso que sai de você quando você se senta e deixa eu te ver: eu olho e vejo o seu sorriso.
Dessa vez, você se senta logo à minha frente. Você, cujos passos nunca contei, cujo paradeiro não sei, cujos dias me são todos iguais mas diferentes pois não sei em qual deles você vive.
Ali, você se senta logo à minha frente. Você não corre, e não anda, e não caminha, e não vai. Você fica, e se senta, e logo à minha frente.
Você, logo à minha frente. Você, que está sempre à minha frente, pois assim eu te vejo. Você, sempre à frente, só que lá atrás, num lugar que eu trouxe comigo. Você, sim, você: à minha frente, só que atrás.
16 de fev. de 2018
26 de nov. de 2017
Buda e Peste formam um só lugar: Budapeste
Aquele era um lugar como outro qualquer: só que diferente.
Era mais perto, só que mais longe. Era também mais monocromático: sim, Budapeste era de uma cor só, e a sua cor era amarelo. Todos os lugares eram amarelos, até os cantinhos eram amarelos, e as esquinas eram amarelas ou sem cor nenhuma. Se havia cor, era eu quem colocava. Eu.
Budapeste era como lugar nenhum: até hoje não acredito que eu tenha chegado até lá. Que eu tenha decido no aeroporto, atravessado a porta, entrado em um táxi e atravessado a cidade à noite, me sentindo em um livro de história no capítulo a partir da segunda guerra mundial - e depois.
Os dias que passaram me trouxeram a saudade de quem eu tinha sido, das pessoas que cruzaram o meu caminho, das que tem estado aqui até hoje, dos lugares escondidos. Do caderno no qual eu escrevia à beira do Danúbio, de capa listrada azul claro, que custou 0,50 centavos. Budapeste era tao barata e eu era milionária, como sempre fui, só que mais, só que no instante agora, naquele momento.
Quando Budapeste passa bem à minha frente, sinto saudade do medo que eu sentia; da língua que, para mim, era xingada; das linhas de metrô que me deixavam perdida no pensar e nas cores, mas me levavam aos lugares; dos passeios com as pessoas que me levavam pela mão; das comidas e sorvetes baratos; das passagens de trem, ônibus, avião a preços irrisórios; da escola de dança na esquina da minha casa, que mais parecia um edifício de tortura praticada pelo governo; da família de ciganos que se mudou para o bairro e chocou o restante da população; do bairro VIII, o mais temido e, por isso, o que mais despertava o meu interesse; do exagero das pessoas ao contar suas histórias; do mau humor estampado no rosto das pessoas e eu, na doçura de ser quem sou; as janelas que se fechavam até nas mínimas frechas e fazia qualquer quarto parecer sala de cinema no meio da tarde; dos passos sem rumo; das árvores com formatos estranhos; de só saber a sigla para as ruas; do parque ao lado e ao fim da rua e logo à frente e em todo lugar; o "melhor bolo da Hungria" que, na verdade, não tinha gosto de nada; da casa das pessoas; das barracas nas ruas; do alívio de encontrar uma padaria; das pessoas que sorriam para mim sem dentes e eu ficava horrorizada, mas sorria de volta, porque sou um amor de pessoa com dentes lindos, brancos e perfeitos, ainda mais na Hungria; de nunca comer nada porque eu achava tudo gorduroso demais; de não comer nada porque eu só sabia cozinhar macarrão; do pão com molho e presunto que, de repente, virou a coisa mais gostosa que eu conhecia; dos infinitos salames que colocaram na minha geladeira e eu nunca comi; da janela que ia do teto ao chão e me fazia sentir medo à noite; do armário embutido no fim da cozinha que era a travessia para outro mundo; do gato que sempre vinha me visitar; de pendurar roupa no varal e morrer vergonha do meu vizinho ver; dos jardineiros mexicanos que eram, no máximo, ciganos; das falcatruas do governo; das amigas que eu fiz; dos amores por quem me apaixonei, vivi e trouxe comigo; da catedral ao fim da rua com suas torres onipotentes (não é bem essa a palavra); de comer cheesecake em qualquer café; dos pães doces que eram bonitos e gostosos, mas me preocupavam por serem de farinha branca; das bicicletas; de caminhar o dia inteiro; da praça dos drogados; do homem que escondia um rato dentro de suas roupas; dos ônibus da época da união soviética que ainda rodavam pelo centro; de correr de madrugada até chegar no meu portão, quando eu voltava sozinha para casa; das bebidas baratas que eu nem bebia; de passar na frente ao cemitério que um dia eu iria visitar; das construções na rua que só acrescentavam àquela confusão toda; dos olhares estrangeiros; de nunca saber em qual entrada do metrô entrar, nem em qual saída sair; de ir ao supermercado e não entender nada; de dividir a chave e ficar presa do lado de fora de casa; de ir comer hambúrguer no meio da semana, de um dia qualquer que era dia especial só porque existíamos; de planejar viagens que, antigamente, pareciam uma excursão para outro planeta; de ouvir as pessoas falarem e contarem os casos de sua vida quando, na verdade, eu só queria ficar ali, sozinha, olhando e sendo; de como estacionavam os carros no passeio e eu achava um absurdo; de comprar chocolate só às sextas-feiras; de tomar sorvete de baunilha que me dava dor de barriga; de ir ao Aldi e achar tudo barato; de toda rua parecer a última parada da civilização; de infinitas lindas pontes que cruzávamos sem parar; de sair à noite para dançar e congelar de frio, querendo só voltar para casa; da pizza de madrugada que era quase de graça; das igrejas ortodoxas nas quais me aventurava e onde me mandavam usar véu sobre os meus cabelos; da revista de graça em inglês, que era a única coisa possível de ler além dos livros que trouxe comigo; de ser amiga dos amigos das minhas amigas; dos convites inusitados; da coragem de ser quem é.
Era mais perto, só que mais longe. Era também mais monocromático: sim, Budapeste era de uma cor só, e a sua cor era amarelo. Todos os lugares eram amarelos, até os cantinhos eram amarelos, e as esquinas eram amarelas ou sem cor nenhuma. Se havia cor, era eu quem colocava. Eu.
Budapeste era como lugar nenhum: até hoje não acredito que eu tenha chegado até lá. Que eu tenha decido no aeroporto, atravessado a porta, entrado em um táxi e atravessado a cidade à noite, me sentindo em um livro de história no capítulo a partir da segunda guerra mundial - e depois.
Os dias que passaram me trouxeram a saudade de quem eu tinha sido, das pessoas que cruzaram o meu caminho, das que tem estado aqui até hoje, dos lugares escondidos. Do caderno no qual eu escrevia à beira do Danúbio, de capa listrada azul claro, que custou 0,50 centavos. Budapeste era tao barata e eu era milionária, como sempre fui, só que mais, só que no instante agora, naquele momento.
Quando Budapeste passa bem à minha frente, sinto saudade do medo que eu sentia; da língua que, para mim, era xingada; das linhas de metrô que me deixavam perdida no pensar e nas cores, mas me levavam aos lugares; dos passeios com as pessoas que me levavam pela mão; das comidas e sorvetes baratos; das passagens de trem, ônibus, avião a preços irrisórios; da escola de dança na esquina da minha casa, que mais parecia um edifício de tortura praticada pelo governo; da família de ciganos que se mudou para o bairro e chocou o restante da população; do bairro VIII, o mais temido e, por isso, o que mais despertava o meu interesse; do exagero das pessoas ao contar suas histórias; do mau humor estampado no rosto das pessoas e eu, na doçura de ser quem sou; as janelas que se fechavam até nas mínimas frechas e fazia qualquer quarto parecer sala de cinema no meio da tarde; dos passos sem rumo; das árvores com formatos estranhos; de só saber a sigla para as ruas; do parque ao lado e ao fim da rua e logo à frente e em todo lugar; o "melhor bolo da Hungria" que, na verdade, não tinha gosto de nada; da casa das pessoas; das barracas nas ruas; do alívio de encontrar uma padaria; das pessoas que sorriam para mim sem dentes e eu ficava horrorizada, mas sorria de volta, porque sou um amor de pessoa com dentes lindos, brancos e perfeitos, ainda mais na Hungria; de nunca comer nada porque eu achava tudo gorduroso demais; de não comer nada porque eu só sabia cozinhar macarrão; do pão com molho e presunto que, de repente, virou a coisa mais gostosa que eu conhecia; dos infinitos salames que colocaram na minha geladeira e eu nunca comi; da janela que ia do teto ao chão e me fazia sentir medo à noite; do armário embutido no fim da cozinha que era a travessia para outro mundo; do gato que sempre vinha me visitar; de pendurar roupa no varal e morrer vergonha do meu vizinho ver; dos jardineiros mexicanos que eram, no máximo, ciganos; das falcatruas do governo; das amigas que eu fiz; dos amores por quem me apaixonei, vivi e trouxe comigo; da catedral ao fim da rua com suas torres onipotentes (não é bem essa a palavra); de comer cheesecake em qualquer café; dos pães doces que eram bonitos e gostosos, mas me preocupavam por serem de farinha branca; das bicicletas; de caminhar o dia inteiro; da praça dos drogados; do homem que escondia um rato dentro de suas roupas; dos ônibus da época da união soviética que ainda rodavam pelo centro; de correr de madrugada até chegar no meu portão, quando eu voltava sozinha para casa; das bebidas baratas que eu nem bebia; de passar na frente ao cemitério que um dia eu iria visitar; das construções na rua que só acrescentavam àquela confusão toda; dos olhares estrangeiros; de nunca saber em qual entrada do metrô entrar, nem em qual saída sair; de ir ao supermercado e não entender nada; de dividir a chave e ficar presa do lado de fora de casa; de ir comer hambúrguer no meio da semana, de um dia qualquer que era dia especial só porque existíamos; de planejar viagens que, antigamente, pareciam uma excursão para outro planeta; de ouvir as pessoas falarem e contarem os casos de sua vida quando, na verdade, eu só queria ficar ali, sozinha, olhando e sendo; de como estacionavam os carros no passeio e eu achava um absurdo; de comprar chocolate só às sextas-feiras; de tomar sorvete de baunilha que me dava dor de barriga; de ir ao Aldi e achar tudo barato; de toda rua parecer a última parada da civilização; de infinitas lindas pontes que cruzávamos sem parar; de sair à noite para dançar e congelar de frio, querendo só voltar para casa; da pizza de madrugada que era quase de graça; das igrejas ortodoxas nas quais me aventurava e onde me mandavam usar véu sobre os meus cabelos; da revista de graça em inglês, que era a única coisa possível de ler além dos livros que trouxe comigo; de ser amiga dos amigos das minhas amigas; dos convites inusitados; da coragem de ser quem é.
4 de nov. de 2017
Minha pele é feita de aurora
Eu não saberia do que teria sido feita se não fosse o cair do dia, aquela hora da aurora, aquele vazio dos dias gelados e o motivo de ser.
Eu era feita do cair do sol, a caminho da noite. Se me visse, notaria as pegadas numa camada espessa branca a cair a madrugada inteira.
Minha pele é feita de aurora e, embora de dia, feita nas primeiras horas da manhã - quando eu ainda nem existia.
Se olhasse mais de perto, veria o brilho no canto. Se houvesse luz do sol, eu ficava transparente. Se fosse noite, eu brilhava. Mas estava sempre tudo ali: sempre tão eu, esse meu jeito de ser.
Minha pele é feita de aurora de uma hora que todo mundo esqueceu: era o meio dia da meia noite, quando todos andavam e cantavam e acendiam as luzes que lhes moram por dentro e corriam para pegar o trem que seguia na vida e mudavam as cores como se tudo fosse apenas folhas de um calendário. Era ali, naquela hora. Onde tudo acontecia e o mundo apenas girava.
Minha pele é feita de aurora e eu estou só adivinhando: a verdade é que não sei que horas são auroras, nem quais horas serão. Tudo que vi foi um escrito no caminhão que andava pela via e, como não gosto de sol, presumi que fosse de noite. É à noite que vem o cair do dia, a hora que a gente se levanta.
Por último, eis minha pele, feita de aurora: se chegares perto e tentares me ler, verás o nome de cada um: pessoas que passaram, mas ficaram. Em mim: naquela pele feita de aurora.
Eu era feita do cair do sol, a caminho da noite. Se me visse, notaria as pegadas numa camada espessa branca a cair a madrugada inteira.
Minha pele é feita de aurora e, embora de dia, feita nas primeiras horas da manhã - quando eu ainda nem existia.
Se olhasse mais de perto, veria o brilho no canto. Se houvesse luz do sol, eu ficava transparente. Se fosse noite, eu brilhava. Mas estava sempre tudo ali: sempre tão eu, esse meu jeito de ser.
Minha pele é feita de aurora de uma hora que todo mundo esqueceu: era o meio dia da meia noite, quando todos andavam e cantavam e acendiam as luzes que lhes moram por dentro e corriam para pegar o trem que seguia na vida e mudavam as cores como se tudo fosse apenas folhas de um calendário. Era ali, naquela hora. Onde tudo acontecia e o mundo apenas girava.
Minha pele é feita de aurora e eu estou só adivinhando: a verdade é que não sei que horas são auroras, nem quais horas serão. Tudo que vi foi um escrito no caminhão que andava pela via e, como não gosto de sol, presumi que fosse de noite. É à noite que vem o cair do dia, a hora que a gente se levanta.
Por último, eis minha pele, feita de aurora: se chegares perto e tentares me ler, verás o nome de cada um: pessoas que passaram, mas ficaram. Em mim: naquela pele feita de aurora.
29 de out. de 2017
Partir não é deixar de ser
Partir não é deixar de ser, porque tudo continua sendo, mesmo que apenas existindo.
Partir não é deixar de ser: é só andar quatrocentos passos à frente e, depois, virar à esquerda. Poderia também ser à direita. Acho que tanto faz.
Partir não é deixar de ser, porque partistes deste mundo e mesmo assim você tem estado: hoje mesmo falamos de você. Ou melhor, escrevemos. Ela me perguntou como você era, como você era comigo e como éramos juntos. Tudo uma questão de ser: logo você, que nunca deixou de ter sido.
Partir não é deixar de ser: partir pode ser como começar um outro sentido.
Você partiu e, partindo-nos todos ao meio, sempre continuou, pelo menos para mim, a ser inteiro. Você, o mais inteiro de todos os homens.
Partir não é nunca deixar de ser: olha tudo o que você tem sido, mesmo ausente, mesmo tão longe, mesmo estando sem estar.
A voce, que partiu mas não foi partido: eu espero que, ainda que partindo, estejas a caminhar. Olho de longe os seus passos de pés abertos, vendo aonde eles vão te levar. Você, que vai, parte mas continua: partir não é deixar de ser. E, você, só tem sido. Tanto.
Partir não é deixar de ser: é só andar quatrocentos passos à frente e, depois, virar à esquerda. Poderia também ser à direita. Acho que tanto faz.
Partir não é deixar de ser, porque partistes deste mundo e mesmo assim você tem estado: hoje mesmo falamos de você. Ou melhor, escrevemos. Ela me perguntou como você era, como você era comigo e como éramos juntos. Tudo uma questão de ser: logo você, que nunca deixou de ter sido.
Partir não é deixar de ser: partir pode ser como começar um outro sentido.
Você partiu e, partindo-nos todos ao meio, sempre continuou, pelo menos para mim, a ser inteiro. Você, o mais inteiro de todos os homens.
Partir não é nunca deixar de ser: olha tudo o que você tem sido, mesmo ausente, mesmo tão longe, mesmo estando sem estar.
A voce, que partiu mas não foi partido: eu espero que, ainda que partindo, estejas a caminhar. Olho de longe os seus passos de pés abertos, vendo aonde eles vão te levar. Você, que vai, parte mas continua: partir não é deixar de ser. E, você, só tem sido. Tanto.
19 de out. de 2017
De repente, uma batida na porta
Era de repente, e era uma batida na porta.
Uma batida na porta tinha todos os sons bonitos que eu ouvira na vida: a música dos meus grupos musicais, a sua voz do seu jeito, os sotaques que eu achava bonito, as palavras que eu ouvi e me marcaram, o caminhar dos passos das pessoas que me inspiram e o barulho do vento num dia frio à noite.
Uma batida na porta era algo tão suave que eu até esquecia que existia, que viria, que chegava. Era também tão intensa - mas nunca pesava, porque sempre leve - que me abria os olhos e me fazia olhar.
Uma batida na porta chegou num dia que eu nem sabia que existia: mas estava lá.
Eu estava rodeando o quarteirão, cantando do meu jeito aquelas meia melodias que soavam inteiras, segurando um copo d'água na mão, pesquisando as estatísticas do governo, planejando a próxima viagem, sentido todo o sentimento que cabia dentro de mim, pondo a roupa para lavar, dirigindo meu carro até o supermercado, correndo à noite, dormindo de madrugada, visitando a livraria, às vezes ficando indignada, indo ao cinema toda semana, escrevendo uma coisa ou outra... - mas o mais que eu estava fazendo quando chegara a batida na porta era vivendo.
Uma batida na porta veio do lado de lá: antes que ela visse que eu a vira eu já estava olhando.
E sentindo, e pensando, e pedindo, e desejando, e esperando, e desistindo, e acreditando, e criando, e esquecendo, e duvidando, e o que eu mais fazia: eu estava vivendo.
Uma batida na porta nem parece, mas tem uma cor: é azul.
Uma batida na porta nem parece, mas aparece.
Uma batida na porta é.
Uma batida na porta tinha todos os sons bonitos que eu ouvira na vida: a música dos meus grupos musicais, a sua voz do seu jeito, os sotaques que eu achava bonito, as palavras que eu ouvi e me marcaram, o caminhar dos passos das pessoas que me inspiram e o barulho do vento num dia frio à noite.
Uma batida na porta era algo tão suave que eu até esquecia que existia, que viria, que chegava. Era também tão intensa - mas nunca pesava, porque sempre leve - que me abria os olhos e me fazia olhar.
Uma batida na porta chegou num dia que eu nem sabia que existia: mas estava lá.
Eu estava rodeando o quarteirão, cantando do meu jeito aquelas meia melodias que soavam inteiras, segurando um copo d'água na mão, pesquisando as estatísticas do governo, planejando a próxima viagem, sentido todo o sentimento que cabia dentro de mim, pondo a roupa para lavar, dirigindo meu carro até o supermercado, correndo à noite, dormindo de madrugada, visitando a livraria, às vezes ficando indignada, indo ao cinema toda semana, escrevendo uma coisa ou outra... - mas o mais que eu estava fazendo quando chegara a batida na porta era vivendo.
Uma batida na porta veio do lado de lá: antes que ela visse que eu a vira eu já estava olhando.
E sentindo, e pensando, e pedindo, e desejando, e esperando, e desistindo, e acreditando, e criando, e esquecendo, e duvidando, e o que eu mais fazia: eu estava vivendo.
Uma batida na porta nem parece, mas tem uma cor: é azul.
Uma batida na porta nem parece, mas aparece.
Uma batida na porta é.
2 de out. de 2017
E se amanhã o medo
E se amanhã o medo?
Parece que eu nem terminei de falar, mas é frase completa.
O som da entonação nos diria que é pergunta feita. Mas eu nem ouso - nem ouso - perguntar.
E se amanhã o medo ... eu paro e olho uma rua ali na esquina que é quase aqui agora.
E se amanhã o medo ... eu viro para o meu lado esquerdo, sigo reto e não caminho. Dei uns passos cor azul-piscina, abaixei o olhar. Era amanhã de novo, mas parecia hoje em dia.
Hoje em dia, que é quase de noite: olho a hora no relógio. Já reparou como as horas são sempre uma, sempre únicas e sempre singulares? Ainda que sejam duas horas, essa hora é só uma: ela é só ela. Inteirinha. Ainda que seja um quarto de hora. Ou meio dia. Ou quinze para as três. E assim, inteiros, somos todos nós - alguns, mais do que os outros. E, entre esses alguns, você e eu.
Mas vamos voltar para o amanhã e o medo que está hoje: o medo não é, mas ele está. Está aqui neste momento. Está estático. Anda em ondas em seu movimento. Vem e bate de repente, nos sacode até nos acordar: veja e olha, diz o medo.
Quando eu paro em uma esquina, eu paro e penso: e se amanhã o medo?
E se amanhã amanhecer de dia, bem na hora em que eu acordar? E se eu pisar na grama e senti-la? E se eu atravessar a rua enquanto os carros estão parados? E se eu tiver tempo e chance e sensibilidade para olhar os detalhes daquele tom de cor em que foi pintado um muro sem vida? -- Ah! E se amanhã o medo?!
Eu me chamo um nome e sou. Eu sou uma pessoa vivida, viva, vivente e vivaz. Muitos dizem que o verbo é existir, mas eu digo: vá além.
E se o amanhã chegar, eu vou olhar e sentir. Eu vou olhar e parar. Eu vou olhar e repetir o nome enquanto escuto a minha voz.
E se amanhã o medo chegar?
Parece que eu nem terminei de falar, mas é frase completa.
O som da entonação nos diria que é pergunta feita. Mas eu nem ouso - nem ouso - perguntar.
E se amanhã o medo ... eu paro e olho uma rua ali na esquina que é quase aqui agora.
E se amanhã o medo ... eu viro para o meu lado esquerdo, sigo reto e não caminho. Dei uns passos cor azul-piscina, abaixei o olhar. Era amanhã de novo, mas parecia hoje em dia.
Hoje em dia, que é quase de noite: olho a hora no relógio. Já reparou como as horas são sempre uma, sempre únicas e sempre singulares? Ainda que sejam duas horas, essa hora é só uma: ela é só ela. Inteirinha. Ainda que seja um quarto de hora. Ou meio dia. Ou quinze para as três. E assim, inteiros, somos todos nós - alguns, mais do que os outros. E, entre esses alguns, você e eu.
Mas vamos voltar para o amanhã e o medo que está hoje: o medo não é, mas ele está. Está aqui neste momento. Está estático. Anda em ondas em seu movimento. Vem e bate de repente, nos sacode até nos acordar: veja e olha, diz o medo.
Quando eu paro em uma esquina, eu paro e penso: e se amanhã o medo?
E se amanhã amanhecer de dia, bem na hora em que eu acordar? E se eu pisar na grama e senti-la? E se eu atravessar a rua enquanto os carros estão parados? E se eu tiver tempo e chance e sensibilidade para olhar os detalhes daquele tom de cor em que foi pintado um muro sem vida? -- Ah! E se amanhã o medo?!
Eu me chamo um nome e sou. Eu sou uma pessoa vivida, viva, vivente e vivaz. Muitos dizem que o verbo é existir, mas eu digo: vá além.
E se o amanhã chegar, eu vou olhar e sentir. Eu vou olhar e parar. Eu vou olhar e repetir o nome enquanto escuto a minha voz.
E se amanhã o medo chegar?
9 de set. de 2017
O tempo que o tempo tem
Se paro para pensar no tempo que o tempo tem...
Me lembro que ainda ontem era outro dia. Em outro ano, e outra época, na mesma festa e em outro lugar.
O hoje é o ontem que acontece hoje de novo. Ainda ontem isso tudo era amanhã. Mas, hoje, já é hoje.
O tempo que o tempo tem leva consigo um pouco da gente. Mas eu sei que deixa muito de si, e de mim, e do outro, e de nós, e de todos. O mundo inteiro cabe no tempo. O tempo quase que não cabe em si.
Se pensássemos no tempo que o tempo tem... não teríamos mais tempo.
Eu hoje acordei e fui viver tudo de novo. Tudo outra vez. Mas como se fosse o primeiro dia. Todo dia que eu acordo é o primeiro dia.
Eu pensei que dentro de 5 minutos caberia uma eternidade: era setembro e eu ainda não tinha encontrado você, minha amiga, que hoje sente falta de mim. Hoje é setembro de novo, já te encontrei e nos separamos, porque cada um colocou o pé num continente - mas nas aulas de história era um mesmo.
Hoje é setembro e há 7 anos foi setembro de novo. Ano que vem, se a vida chegar, será setembro outra vez, e eu sei que setembro se repetirá até depois que a gente for embora.
Outro dia era esse mesmo dia de hoje, só que outro dia, ainda que do mesmo nome e mesmo número. Fazia um pouco de frio mas eu gostava de sentir um pouco de frio, então eu não vesti blusa de frio alguma - eu estava sendo eu. E chovia. Ou melhor, chuviscava. Havia umas árvores no caminho que eu nunca esqueci a cor: eram verde escuro. Uma bicicleta parada na esquina, e carros estacionados na diagonal. Atrás, havia os prédios de tijolos que eu bati o olho e os vi para sempre: jurei que iria desenhá-los em folha de papel, como eu fazia quando era jovem, mas desenhei mesmo foi na memória. Éramos cinco, depois éramos sei, e então sete. Mas faltava mais um: você, que faria de nós oito, e de mim inteira, e de nós dois quase um, só que dois, porque dois é número inteiro: são duas pessoas inteiras juntas. Você não estava, mas já era presente. Eu já te notava, mas não ousava te olhar. Era então onze horas da noite e você chegaste com um cartaz em mãos: e eu o vi, mas olhei mesmo foi para os seus olhos e o seu cabelo e o seu sorriso e o seu jeito de andar e o tom da sua voz e as palavras que você falava e o modo como você discorria e o seu cheiro que eu sentia. Eu só notei, e continuei sentada no sofá.
O tempo que o tempo tem, penso eu, deve caber dentro de uma caixinha. Eu fico pensando se o tempo tem mãos: que é para se segurar.
Se não, vivemo-lo. Até o último minuto, e todos os segundos, até o último dia da vida, e o que foi ontem, e o que é hoje, e o que já é quase amanhã. Vivamos, enquanto é tempo, o tempo que o tempo tem.
E, enquanto isso, o tempo entre os tempos, aquele no meio do caminho, entre o passado e o futuro: vivamos.
Me lembro que ainda ontem era outro dia. Em outro ano, e outra época, na mesma festa e em outro lugar.
O hoje é o ontem que acontece hoje de novo. Ainda ontem isso tudo era amanhã. Mas, hoje, já é hoje.
O tempo que o tempo tem leva consigo um pouco da gente. Mas eu sei que deixa muito de si, e de mim, e do outro, e de nós, e de todos. O mundo inteiro cabe no tempo. O tempo quase que não cabe em si.
Se pensássemos no tempo que o tempo tem... não teríamos mais tempo.
Eu hoje acordei e fui viver tudo de novo. Tudo outra vez. Mas como se fosse o primeiro dia. Todo dia que eu acordo é o primeiro dia.
Eu pensei que dentro de 5 minutos caberia uma eternidade: era setembro e eu ainda não tinha encontrado você, minha amiga, que hoje sente falta de mim. Hoje é setembro de novo, já te encontrei e nos separamos, porque cada um colocou o pé num continente - mas nas aulas de história era um mesmo.
Hoje é setembro e há 7 anos foi setembro de novo. Ano que vem, se a vida chegar, será setembro outra vez, e eu sei que setembro se repetirá até depois que a gente for embora.
Outro dia era esse mesmo dia de hoje, só que outro dia, ainda que do mesmo nome e mesmo número. Fazia um pouco de frio mas eu gostava de sentir um pouco de frio, então eu não vesti blusa de frio alguma - eu estava sendo eu. E chovia. Ou melhor, chuviscava. Havia umas árvores no caminho que eu nunca esqueci a cor: eram verde escuro. Uma bicicleta parada na esquina, e carros estacionados na diagonal. Atrás, havia os prédios de tijolos que eu bati o olho e os vi para sempre: jurei que iria desenhá-los em folha de papel, como eu fazia quando era jovem, mas desenhei mesmo foi na memória. Éramos cinco, depois éramos sei, e então sete. Mas faltava mais um: você, que faria de nós oito, e de mim inteira, e de nós dois quase um, só que dois, porque dois é número inteiro: são duas pessoas inteiras juntas. Você não estava, mas já era presente. Eu já te notava, mas não ousava te olhar. Era então onze horas da noite e você chegaste com um cartaz em mãos: e eu o vi, mas olhei mesmo foi para os seus olhos e o seu cabelo e o seu sorriso e o seu jeito de andar e o tom da sua voz e as palavras que você falava e o modo como você discorria e o seu cheiro que eu sentia. Eu só notei, e continuei sentada no sofá.
O tempo que o tempo tem, penso eu, deve caber dentro de uma caixinha. Eu fico pensando se o tempo tem mãos: que é para se segurar.
Se não, vivemo-lo. Até o último minuto, e todos os segundos, até o último dia da vida, e o que foi ontem, e o que é hoje, e o que já é quase amanhã. Vivamos, enquanto é tempo, o tempo que o tempo tem.
E, enquanto isso, o tempo entre os tempos, aquele no meio do caminho, entre o passado e o futuro: vivamos.
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