Quando vejo o caminho ainda úmido, nuvens pesadas e cinzas, prestes a desabar em chuva, paro e penso: é o céu sobre os ombros.
E, assim que começo o caminho e meus passos começam a se ajeitar, toda chuva cai em mim e, num suspiro de sorriso, só tenho a declarar: sim, era o céu sobre os ombros.
Eu já tive o céu ao redor, na frente, atrás e do lado. Mas, confesso, o que mais gosto é quando olho e vejo o céu sobre os ombros.
Porque o céu sobre os ombros, ora visto como o peso nas costas, é o abraço que veio sobre mim. É a lembrança do potencial guardado, é a piscadela rápida enquanto subo correndo uma escada. É esse, sim, o céu sobre os ombros: leve como uma ventania assustadora. Ah.
Eu já tive o céu sobre os ombros e ainda o tenho, mesmo que eu o esqueça de carregar. Lembro de uma vez, que na verdade foram anos, e finalmente o dia que chegou. Lembro de dar 10 passos, olhar para cima, ver um monte de janelas num prédio e falar: "então é aqui". E abrir um sorriso pronto para me levar para o melhor a me esperar.
Eu uma vez tive o céu sobre os ombros, naquela vez em que estive sentada de costas para uma mesa que continha uma gotinha de céu. Tive o céu sobre os ombros naquela manhã que já era quase de tarde e, de ressaca, espiava o olhar mais esperado sobre mim. Tive o céu sobre os ombros quando desci e fui jantar: entre tantas pessoas, a convidada era eu.
O céu sobre os ombros abraçou-me quando, num dia vazio, procurou por eles mas acharam a mim. Falou comigo, e de novo e de novo. E toda conversa virou um novo suspiro, que se alongou pela noite, que recomeçou no outro dia e que durou quase um vida inteira tamanha a sua intensidade.
Eu tive o céu sobre os ombros quando me aventurei a pedir que me levasse em uma aventura: entrar naquele local abandonado, do qual eu morria de medo e só poderia aventurá-lo se estivesse na melhor das companhias: você. Funcionou: nunca entramos naquele lugar, mas estivemos na companhia um do outro por outros vários lugares abandonados que agora eram cheios da gente.
Eu tenho o céu sobre os ombros e o vejo sempre que olho para cima. Vejo-o sempre também quando olho para o lado e, principalmente, quando olho para dentro de mim. Reconheço-o quando leio meus cadernos, quando desenho uma letra ou quando te envio um pensamento meu cheio de inspiração que chega até o outro lado do mundo. Tive e tenho o céu sobre os ombros sempre que estive no melhor de mim e no melhor das pessoas, sendo elas as pessoas certas.
O céu sobre os ombros tomou conta de mim: desceu aqui na Terra e me abraçou num abraço. Falou todas as palavras que eu queria ouvir (eu amo ler palavras - eu vejo palavras em tudo, até no que não é palavra mas desenho). Me deu um beijo e disse-me para perder o juízo sem medo de me encontrar. Me jogou do precipício e esteve lá embaixo para me resgatar. Olhou através de mim e viu além. Me encarou nos olhos sem sequer piscar. Me puxou o cabelo a fim de me lembrar quem sou. Fez tudo o que foi feito para mim desde o dia da Criação com muito carinho. Falou grave como o som do chão, fez-me sentir o cheiro de todas as coisas ao mesmo tempo de uma só vez e gargalhou no último capítulo.
O céu sobre os ombros toma conta de mim. Confesso que muitas vezes esqueço de olhar para ele, pois dentro dele eu moro e vou seguindo como se ao menos pudesse ficar perdida. O céu sobre os ombros veio cá e me puxou.
Eu tenho o céu sobre os ombros e o dia que eu mais gosto na vida é quando eu olho para ele, ele olha para mim, nos reconhecemos e, então, numa piscadela, inicio minha nova história.
Quantas histórias há por vir? :)
29 de ago. de 2016
28 de ago. de 2016
O lobo da estepe
Eis o lobo da estepe: você.
Um dia eu ganhei um livro de uma colega de trabalho no meu último dia. Eu havia decidido ir seguir o meu caminho mas, antes, me deram alguns livros. E uma bebida alcoólica, e um chocolate.
Era a segunda vez que eu me encontrava com o lobo da estepe. Olhei para a capa do livro e pensei: "era ele". (na verdade, "é você". É que estou falando de algo que aconteceu no passado)
Eu havia posto todas as minhas expectativas em O Lobo da Estepe e, por isso, li o livro sem ler, sabe como? Eu lia, mas não nutria. Eu não queria assimilar nada, nem aprender nada, nem saber nada: eu só queria experenciar. Eu olhava para as letras e as deixava dizer uma coisa para mim, esperando.
Um dia eu encontrei um lobo da estepe e era um lobo com os olhos mais bonitos que eu já vi. Tinha também o sorriso mais derretedor do meu coração no mundo. Mas era um lobo da estepe.
Eu hoje fazia colagens com minha irmã quando escutei Wolf Girl, de uma banda norueguesa-não-indicada-pela-minha-outra-irmã (e por isso descobri sozinha). [Não ficava necessariamente alegre quando escutava esta música, pois used to listen to it quando eu morava em Budapeste - mais precisamente, no espaço de um tempo que foi o dia em que li uma coisa escrita que ele me escreveu. Eu morava com a Angela e passei a gastar a maior parte do meu dia no quarto dela. Eu comia torrada com Nutella e nada mais. Eu perdi 7 kg nessa de só comer torrada com Nutella e nada mais. Eu li uma coisa que alguém me escreveu e encheu meu olho d'água como resultado do processo que se desenvolvia dentro do meu coração. Eu acordava e corria para a cama da Angela. Eu passava a maior parte do meu tempo no quarto dela, com ou sem ela.] - Neste momento, minha irmã levanta o rosto, me fita os olhos e diz: ele te disse isso? Oh, minha irmã, ele é um lobo da estepe, don't you know?
E, como os olhos mais belos do mundo, o lobo da estepe engana como folhas no verão: vão morrer logo, pois do verão ninguém escapa.
Era uma vez eu e um livro que encontrei jogado em meio a um monte de bagunça em um quarto dividido onde não se dormiu. Ficava na cidade do fim do mundo. O livro se chamava O Lobo da Estepe e tenho em mente a capa até hoje: uma mulher, e um lobo, e umas coisas num fundo branco. Lembro que quem lia o livro também era o lobo da estepe. Passado alguns anos, o livro veio parar nas minhas mãos como um presente de uma amiga: eu leria, mas já havia descoberto quem era o lobo da estepe e o motivo daquele ser o nome.
Era uma vez o lobo da estepe - e seu pêlo era tão lindo! - mas era um lobo.
Um dia eu ganhei um livro de uma colega de trabalho no meu último dia. Eu havia decidido ir seguir o meu caminho mas, antes, me deram alguns livros. E uma bebida alcoólica, e um chocolate.
Era a segunda vez que eu me encontrava com o lobo da estepe. Olhei para a capa do livro e pensei: "era ele". (na verdade, "é você". É que estou falando de algo que aconteceu no passado)
Eu havia posto todas as minhas expectativas em O Lobo da Estepe e, por isso, li o livro sem ler, sabe como? Eu lia, mas não nutria. Eu não queria assimilar nada, nem aprender nada, nem saber nada: eu só queria experenciar. Eu olhava para as letras e as deixava dizer uma coisa para mim, esperando.
Um dia eu encontrei um lobo da estepe e era um lobo com os olhos mais bonitos que eu já vi. Tinha também o sorriso mais derretedor do meu coração no mundo. Mas era um lobo da estepe.
Eu hoje fazia colagens com minha irmã quando escutei Wolf Girl, de uma banda norueguesa-não-indicada-pela-minha-outra-irmã (e por isso descobri sozinha). [Não ficava necessariamente alegre quando escutava esta música, pois used to listen to it quando eu morava em Budapeste - mais precisamente, no espaço de um tempo que foi o dia em que li uma coisa escrita que ele me escreveu. Eu morava com a Angela e passei a gastar a maior parte do meu dia no quarto dela. Eu comia torrada com Nutella e nada mais. Eu perdi 7 kg nessa de só comer torrada com Nutella e nada mais. Eu li uma coisa que alguém me escreveu e encheu meu olho d'água como resultado do processo que se desenvolvia dentro do meu coração. Eu acordava e corria para a cama da Angela. Eu passava a maior parte do meu tempo no quarto dela, com ou sem ela.] - Neste momento, minha irmã levanta o rosto, me fita os olhos e diz: ele te disse isso? Oh, minha irmã, ele é um lobo da estepe, don't you know?
E, como os olhos mais belos do mundo, o lobo da estepe engana como folhas no verão: vão morrer logo, pois do verão ninguém escapa.
Era uma vez eu e um livro que encontrei jogado em meio a um monte de bagunça em um quarto dividido onde não se dormiu. Ficava na cidade do fim do mundo. O livro se chamava O Lobo da Estepe e tenho em mente a capa até hoje: uma mulher, e um lobo, e umas coisas num fundo branco. Lembro que quem lia o livro também era o lobo da estepe. Passado alguns anos, o livro veio parar nas minhas mãos como um presente de uma amiga: eu leria, mas já havia descoberto quem era o lobo da estepe e o motivo daquele ser o nome.
Era uma vez o lobo da estepe - e seu pêlo era tão lindo! - mas era um lobo.
18 de ago. de 2016
É cada coisa que escrevo só para dizer que te amo
É cada coisa que escrevo, e outras tantas que não escrevo, só para dizer o indizível: que te amo.
Todas aquelas vezes: quando sentei na mesa para jantar - cada uma daquelas vezes, apressar o passo e torcer para que você viesse, quando te defendi dentro de um ônibus e você nunca soube porque eu nem te contei, as manias que peguei de você e incorporei ao meu repertório de ser eu, quando te apresentei o amaciante de roupas, todas as vezes que falei de você, o pedido para me levar num lugar do qual na verdade eu morria de medo, quando abriu a porta do elevador com os pés e meu coração parou, te olhar de relance enquanto você não via e reparar cada detalhe seu e guardá-los para sempre, minha inspiração para escrever artigos e também a falta dela, os chocolates que lhe comprei e deixei sobre a mesa que você nem usava num quarto onde você não dormia, a ligação em que lhe falei em sussurros de saudade.
E tantas outras coisas das quais não lembro, e outras das quais eu sequer estava aware of, e as outras que sei que existiram. Tantas, tantas, tantas coisas que não eram coisas: eram tudo gestos meus.
Era tudo para dizer que te amo, embora nunca dissesse. Embora nunca te disse.
É cada coisa que escrevo, e tudo se resume ao bater das asas de uma borboleta: é pequeno, é singelo, é até escondido, mas há. Porque é. Será que um dia ainda vai ser? (I wonder)
É cada coisa que escrevo só para não dizer que te amo, quando te amo tanto. Falo de mim, falo das coisas, troco o nome das pessoas. Mudo o assunto, uso metáforas, sinto o cheiro e o traduzo em palavras. Ah, é cada coisa...
É cada coisa que eu sinto quando sinto que te amo. O sentimento parece uma cidade imensa e vazia que habita dentro de mim. Nela, mora o meu coração tão tenro. É como se eu fosse um jardim de uma casa com um gramado verde na frente, mas, que na Hungria, vira depósito. Aí chega você e tudo fica florido: as árvores são, o céu está, a rua passa. E eu sinto tudo outra vez.
Parece um pássaro, parece um caderno pronto para ser escrito, é como uma folha toda rascunhada do maior carinho meu, é a fotografia de uma lembrança, é aquela melodia de filme, é um olhar no espelho, é um parar no tempo de apenas dois segundos, é eu me dar conta de mim: isso é um eu te amo.
É cada coisa que escrevo só para dizer que te amo: todas as poesias, todas elas. Todas as linhas redigidas como se fossem o palpitar do meu coração. As palavras, cada uma das palavras que escolho escrever. O verbo no infinito, o uso do gerúndio. Há ainda os tempos verbais que não sei, os que uso de forma errada e ainda os que criei: é tudo porque te amo. As citações. A foto de Virginia Woolf pensativa. Os retratos de Sylvia Plath no meu quarto que me encaram de forma tácita - e eu nem sei o que é isso! As cartas de Fitzgerald que não lhe escrevi, mas que tanto lhe escreveria. As coisas que te contei e as que nem te contei ainda. Os lugares que fui, os caminhos por onde caminhei. As vezes que não cruzei com seu rosto por toda parte mas, ainda assim, te levei comigo. A frieza de Hemingway, de onde tiro ternura e envio a você.
É tudo para dizer do meu amor a você, que tanto amo.
Todas aquelas vezes: quando sentei na mesa para jantar - cada uma daquelas vezes, apressar o passo e torcer para que você viesse, quando te defendi dentro de um ônibus e você nunca soube porque eu nem te contei, as manias que peguei de você e incorporei ao meu repertório de ser eu, quando te apresentei o amaciante de roupas, todas as vezes que falei de você, o pedido para me levar num lugar do qual na verdade eu morria de medo, quando abriu a porta do elevador com os pés e meu coração parou, te olhar de relance enquanto você não via e reparar cada detalhe seu e guardá-los para sempre, minha inspiração para escrever artigos e também a falta dela, os chocolates que lhe comprei e deixei sobre a mesa que você nem usava num quarto onde você não dormia, a ligação em que lhe falei em sussurros de saudade.
E tantas outras coisas das quais não lembro, e outras das quais eu sequer estava aware of, e as outras que sei que existiram. Tantas, tantas, tantas coisas que não eram coisas: eram tudo gestos meus.
Era tudo para dizer que te amo, embora nunca dissesse. Embora nunca te disse.
É cada coisa que escrevo, e tudo se resume ao bater das asas de uma borboleta: é pequeno, é singelo, é até escondido, mas há. Porque é. Será que um dia ainda vai ser? (I wonder)
É cada coisa que escrevo só para não dizer que te amo, quando te amo tanto. Falo de mim, falo das coisas, troco o nome das pessoas. Mudo o assunto, uso metáforas, sinto o cheiro e o traduzo em palavras. Ah, é cada coisa...
É cada coisa que eu sinto quando sinto que te amo. O sentimento parece uma cidade imensa e vazia que habita dentro de mim. Nela, mora o meu coração tão tenro. É como se eu fosse um jardim de uma casa com um gramado verde na frente, mas, que na Hungria, vira depósito. Aí chega você e tudo fica florido: as árvores são, o céu está, a rua passa. E eu sinto tudo outra vez.
Parece um pássaro, parece um caderno pronto para ser escrito, é como uma folha toda rascunhada do maior carinho meu, é a fotografia de uma lembrança, é aquela melodia de filme, é um olhar no espelho, é um parar no tempo de apenas dois segundos, é eu me dar conta de mim: isso é um eu te amo.
É cada coisa que escrevo só para dizer que te amo: todas as poesias, todas elas. Todas as linhas redigidas como se fossem o palpitar do meu coração. As palavras, cada uma das palavras que escolho escrever. O verbo no infinito, o uso do gerúndio. Há ainda os tempos verbais que não sei, os que uso de forma errada e ainda os que criei: é tudo porque te amo. As citações. A foto de Virginia Woolf pensativa. Os retratos de Sylvia Plath no meu quarto que me encaram de forma tácita - e eu nem sei o que é isso! As cartas de Fitzgerald que não lhe escrevi, mas que tanto lhe escreveria. As coisas que te contei e as que nem te contei ainda. Os lugares que fui, os caminhos por onde caminhei. As vezes que não cruzei com seu rosto por toda parte mas, ainda assim, te levei comigo. A frieza de Hemingway, de onde tiro ternura e envio a você.
É tudo para dizer do meu amor a você, que tanto amo.
17 de ago. de 2016
Morangos mofados
Pensara eu que a validade das coisas começava a contar no dia em que foram criadas. Aliás, no dia em que foram criadas, não - no dia em que passaram a existir, isso sim.
Mas, e se nunca existiram? - perguntava a outra voz dela. E eu, então, a calava.
E, se nunca existiram, é porque nunca foram criadas? - ressoava, assim desse modo, a outra voz.
E então entrava um filósofo a contar histórias: "tudo havia sido criado no dia em que fora feito. a precisão do tempo, não se sabe. Para uns é contada em segundos; para outros, em frações de anos. Ela, no entanto, os conta nas datas de aniversários, embora haja infinitas linhas invisíveis entre eles em que coisas incríveis acontecem. Nos lembraremos do que?".
Ora, bolas. Eu não havia entendido nada, mas já sabia a resposta para o momento. É que eu mesma criara tudo na minha cabeça e dava voz aos personagens, chegando a chamá-los de filósofos. "Imagina se um dia eu escrevo um livro...", e então me deparei com o fato de eu estar divagando para fugir do que estava ali.
De volta para o lugar em que começou, eis como segue a história: era uma vez uma menina, e um pai e uma mãe, e então outras duas meninas. Eram 3, no total. Mas eram nulas, eram zero e eram nenhuma. E foi assim por muitos anos, que pareciam datas mas eram apenas a passagem do tempo. Até que, um dia, um trem passou e, nele, lia-se num cartaz afixado: "morangos mofados".
Então era isso.
Então era isso e ela correu para escrever num papel. Tivera uma visão além do tempo, como se o coração fosse tocado, não da forma bruta, mas com toda a suavidade de uma folha. Era então este o segredo.
Um dia tudo passa e até o que vem passando será passado. As flores terão brotado, as rochas mudarão de lugar, a água continuará seu percurso descendo rios e o vento será não mais que um sopro. O tempo é este porque só existe o agora. O ontem já se foi e o amanhã ainda não veio. O código para tudo isso é lido por muitos mas entendido por poucos, e lhe foi entregue em mãos no dia da Criação.
Enquanto isso, será ela mesma: eu, você. Vá sendo, porque o jeito é ir e ser si mesma. Neste momento, uma menina que segura na mão do pai passa na sua frente, mas, no tempo de um piscar de olhos dá-se conta de que se trata de uma Visão.
Pai - !.
Guarde os morangos, mas vá. Para que não fiquem mofados.
Mas, e se nunca existiram? - perguntava a outra voz dela. E eu, então, a calava.
E, se nunca existiram, é porque nunca foram criadas? - ressoava, assim desse modo, a outra voz.
E então entrava um filósofo a contar histórias: "tudo havia sido criado no dia em que fora feito. a precisão do tempo, não se sabe. Para uns é contada em segundos; para outros, em frações de anos. Ela, no entanto, os conta nas datas de aniversários, embora haja infinitas linhas invisíveis entre eles em que coisas incríveis acontecem. Nos lembraremos do que?".
Ora, bolas. Eu não havia entendido nada, mas já sabia a resposta para o momento. É que eu mesma criara tudo na minha cabeça e dava voz aos personagens, chegando a chamá-los de filósofos. "Imagina se um dia eu escrevo um livro...", e então me deparei com o fato de eu estar divagando para fugir do que estava ali.
De volta para o lugar em que começou, eis como segue a história: era uma vez uma menina, e um pai e uma mãe, e então outras duas meninas. Eram 3, no total. Mas eram nulas, eram zero e eram nenhuma. E foi assim por muitos anos, que pareciam datas mas eram apenas a passagem do tempo. Até que, um dia, um trem passou e, nele, lia-se num cartaz afixado: "morangos mofados".
Então era isso.
Então era isso e ela correu para escrever num papel. Tivera uma visão além do tempo, como se o coração fosse tocado, não da forma bruta, mas com toda a suavidade de uma folha. Era então este o segredo.
Um dia tudo passa e até o que vem passando será passado. As flores terão brotado, as rochas mudarão de lugar, a água continuará seu percurso descendo rios e o vento será não mais que um sopro. O tempo é este porque só existe o agora. O ontem já se foi e o amanhã ainda não veio. O código para tudo isso é lido por muitos mas entendido por poucos, e lhe foi entregue em mãos no dia da Criação.
Enquanto isso, será ela mesma: eu, você. Vá sendo, porque o jeito é ir e ser si mesma. Neste momento, uma menina que segura na mão do pai passa na sua frente, mas, no tempo de um piscar de olhos dá-se conta de que se trata de uma Visão.
Pai - !.
Guarde os morangos, mas vá. Para que não fiquem mofados.
5 de ago. de 2016
Horas para gastar
Então era assim que se chamavam estes últimos dias: horas para gastar.
Alguns dias são anos.
Se aquele é o seu, este é meu, porque quem faz meu tempo sou eu. Se acordo de manhã, já abro os olhos. E, se quero, volto a fechar. Se levanto, me arrasto. Se me arrasto, danço e deito.
Essas são minhas horas para gastar: e eu faço-as como quiser, e as crio tão belas! Nunca almoço ao meio dia - sempre preferi jantar. Café da manhã é um copo de leite porque, quando se pisca, já é segunda-feira. No meio do dia, pausa para viver: é que eu gosto tanto de olhar para a Hora e vê-la passar. Passa sobre mim, passa para mim, passa por mim: mas passa sempre comigo.
Um dia na vida fizemos uma fila, e nos foi dada uma prancheta de papel. "Toma, escreve aí todos os desejos, porque lhe serão dadas horas para gastar", ressoou ao vento. E então eu fui. E desde então tenho vivido.
Se paro e penso, logo sinto: não faço hora; a hora que me é dada é gastada.
Um dia na vida é como Hora para gastar: e eu nunca sei se durmo até tarde ou se levanto cedo - afinal, o que é aproveitar o dia?
Mas, e se você tivesse apenas mais 24 horas disponíveis e, então, fim?! Ah, eu viveria cada uma delas! E teria vivido 24 horas vezes mil, porque há dentro das horas os minutos e, dentro deles, os segundos. Quando tempo há ainda!
Eu tenho horas para gastar e sou uma pessoa criativa. Eu tenho horas para gastar, mas sou também preguiçosa. E está bem, está tudo sempre bem. Mas é que um dia, quando eu acordo mais na metade de um eu (é que todos temos duas metades - é isso que nos faz inteiros), corro e penso, paro e sinto, divago, mas caminho.
Uma palavra que eu escrevi; uma foto que parou o tempo; uma comida que eu cozinhei para mim e depois até comi (quando cozinho, perco a fome); um lugar que eu visitei; o jeito das pessoas andarem; outro lugar que eu morei um dia; um "oi" e um "olá"; um recado na porta do quarto; um vidro que me deixa ver a vida enquanto arrumo as coisas que tem cada uma o seu próprio nome; uma lembrança ou outra, e, quem sabe, as duas; um esconderijo ainda nem descoberto mas que eu já vi; uma noite que dura o dia inteiro; um assobio só para chamar seu nome; um momento que eu olhei e vi; uma volta de carro, só mais uma; o sorriso e os olhos; aquela taça de sorvete; meus banhos quentes nunca frios; o contorno do seu corpo; o teto do mundo; uns cadernos; o portão da casa ao lado que era como entrar num livro; um tesouro ao meu lado; todo o som ao redor; e os gestos tão meus.
E no fim do dia reflito: afinal, viver a vida é gastá-la ou salvá-la?
Que não se esqueçam: só se salva quem vive.
Alguns dias são anos.
Se aquele é o seu, este é meu, porque quem faz meu tempo sou eu. Se acordo de manhã, já abro os olhos. E, se quero, volto a fechar. Se levanto, me arrasto. Se me arrasto, danço e deito.
Essas são minhas horas para gastar: e eu faço-as como quiser, e as crio tão belas! Nunca almoço ao meio dia - sempre preferi jantar. Café da manhã é um copo de leite porque, quando se pisca, já é segunda-feira. No meio do dia, pausa para viver: é que eu gosto tanto de olhar para a Hora e vê-la passar. Passa sobre mim, passa para mim, passa por mim: mas passa sempre comigo.
Um dia na vida fizemos uma fila, e nos foi dada uma prancheta de papel. "Toma, escreve aí todos os desejos, porque lhe serão dadas horas para gastar", ressoou ao vento. E então eu fui. E desde então tenho vivido.
Se paro e penso, logo sinto: não faço hora; a hora que me é dada é gastada.
Um dia na vida é como Hora para gastar: e eu nunca sei se durmo até tarde ou se levanto cedo - afinal, o que é aproveitar o dia?
Mas, e se você tivesse apenas mais 24 horas disponíveis e, então, fim?! Ah, eu viveria cada uma delas! E teria vivido 24 horas vezes mil, porque há dentro das horas os minutos e, dentro deles, os segundos. Quando tempo há ainda!
Eu tenho horas para gastar e sou uma pessoa criativa. Eu tenho horas para gastar, mas sou também preguiçosa. E está bem, está tudo sempre bem. Mas é que um dia, quando eu acordo mais na metade de um eu (é que todos temos duas metades - é isso que nos faz inteiros), corro e penso, paro e sinto, divago, mas caminho.
Uma palavra que eu escrevi; uma foto que parou o tempo; uma comida que eu cozinhei para mim e depois até comi (quando cozinho, perco a fome); um lugar que eu visitei; o jeito das pessoas andarem; outro lugar que eu morei um dia; um "oi" e um "olá"; um recado na porta do quarto; um vidro que me deixa ver a vida enquanto arrumo as coisas que tem cada uma o seu próprio nome; uma lembrança ou outra, e, quem sabe, as duas; um esconderijo ainda nem descoberto mas que eu já vi; uma noite que dura o dia inteiro; um assobio só para chamar seu nome; um momento que eu olhei e vi; uma volta de carro, só mais uma; o sorriso e os olhos; aquela taça de sorvete; meus banhos quentes nunca frios; o contorno do seu corpo; o teto do mundo; uns cadernos; o portão da casa ao lado que era como entrar num livro; um tesouro ao meu lado; todo o som ao redor; e os gestos tão meus.
E no fim do dia reflito: afinal, viver a vida é gastá-la ou salvá-la?
Que não se esqueçam: só se salva quem vive.
2 de ago. de 2016
O som do coração
Eis o som do coração - e ele chega, de fininho, muito estridente.
Este é o som do coração: cujo nome não posso falar.
Ele grita como um sussurro não ouvido; soletra cada palavra como a gritar.
Eis o som do coração: quando já vem, sei que está vindo.
O som do coração foi uma vez silenciado. Coloquei a mão em sua boca e tampei meu coração todo. Ele dormiu, ele morreu - já nem sei. Ele esqueceu e foi esquecido. Mas aí um dia, um dia, ele acordou e falou: eis me aqui, o som e o coração.
O som do coração tem seu nome escrito. O som do coração foi nomeado depois de mim. O som do coração fala baixo e ressoa barulhos de ondas de um mar. O som do coração é a parte mais minha e, por isso, estou a escondê-lo, para guardar o segredo. Se lhe escuto, revelo-me todinha.
Vem ali o som do coração: abaixo a cabeça pois sei que me abraçará todinha. Me envolverá como um fenômeno da natureza selvagem, o qual não sei o nome. Me entregará como um carteiro entrega o papel escrito. Vou lhe contar o segredo: eis aqui o som do meu coração, e ele tem seu nome escrito.
Ontem fui visitada pelo som do meu coração. Fazia um barulho alto que eu não queria. Tapei os ouvidos e deixei-me deitar e estender nesta cama do mundo. Esperei o minuto, que virou hora, que quase durou um dia passar. Fui paciente com tal barulho, fui delicada comigo, fui paciente com o tempo. Deixe estar - disse o som que vinha do coração.
Era uma vez um coração que falava mas vivia calado. Afugentei-me nele e mordi a língua. Guardei cada palavra então para mim. Olhei para as minhas mãos, que redigiam o significado. Ouvi bater os acordes no meu peito - e pensei: será que mais alguém escuta o nome disso?
Eis o som do meu coração: ora isso, ora aquilo. Mas o coração a gente leva dentro do peito - que remédio há?
Este é o som do coração: cujo nome não posso falar.
Ele grita como um sussurro não ouvido; soletra cada palavra como a gritar.
Eis o som do coração: quando já vem, sei que está vindo.
O som do coração foi uma vez silenciado. Coloquei a mão em sua boca e tampei meu coração todo. Ele dormiu, ele morreu - já nem sei. Ele esqueceu e foi esquecido. Mas aí um dia, um dia, ele acordou e falou: eis me aqui, o som e o coração.
O som do coração tem seu nome escrito. O som do coração foi nomeado depois de mim. O som do coração fala baixo e ressoa barulhos de ondas de um mar. O som do coração é a parte mais minha e, por isso, estou a escondê-lo, para guardar o segredo. Se lhe escuto, revelo-me todinha.
Vem ali o som do coração: abaixo a cabeça pois sei que me abraçará todinha. Me envolverá como um fenômeno da natureza selvagem, o qual não sei o nome. Me entregará como um carteiro entrega o papel escrito. Vou lhe contar o segredo: eis aqui o som do meu coração, e ele tem seu nome escrito.
Ontem fui visitada pelo som do meu coração. Fazia um barulho alto que eu não queria. Tapei os ouvidos e deixei-me deitar e estender nesta cama do mundo. Esperei o minuto, que virou hora, que quase durou um dia passar. Fui paciente com tal barulho, fui delicada comigo, fui paciente com o tempo. Deixe estar - disse o som que vinha do coração.
Era uma vez um coração que falava mas vivia calado. Afugentei-me nele e mordi a língua. Guardei cada palavra então para mim. Olhei para as minhas mãos, que redigiam o significado. Ouvi bater os acordes no meu peito - e pensei: será que mais alguém escuta o nome disso?
Eis o som do meu coração: ora isso, ora aquilo. Mas o coração a gente leva dentro do peito - que remédio há?
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