E todos estes últimos dias, que têm sido de tom nublado do céu e de um frio que conforta a alma, me fazem lembrar que sou a menina do fim da rua.
Sou, porque fui. A menina do fim da rua usa meia xadrez e nunca, jamais, anda descalça com os pés no chão. Anda de chinelo. Mas, de pé no chão, não.
Sou a menina do fim da rua que foi para a praça em uma tarde de sábado vazia e gelada ler o livro da minha irmã. Corta-me o coração não poder sublinhar todas aquelas passagens bonitas que soam como poesia, por isso devo anotar no papel ao lado. A autora é cantora, e cantora que compõe e morou no Chelsea é também poeta. Tá explicado.
Porque sou a menina do fim da rua, vivo sempre com medo devido ao local do mundo de onde vim, tão imensamente violento. Desconfio até do fio de cabelo porque sou tímida para olhar nos olhos. Geralmente olho para a boca das pessoas enquanto elas falam. E quase nunca puxo assunto - sei mais é observar porque assim a gente aprende mais.
Não sou eu, porque sou a menina estrangeira. E isto me dá uma infinidade de caminhos por onde me esconder sem me revelar, pois, como disse, sou muito tímida. A minha língua - ou melhor, meu idioma - é da cor de um jornal e a escrita é cheia de curvas - tão difícil entender o que querem dizer por causa da grande subjetividade. E sinto-me justificada pois também não entendo nada do que você fala. Enquanto isso, fixo meu olhar nas janelas das casas ao redor - eu sempre gostei tanto de janelas e portas, eu queria até ser arquiteta de todo o meu coração só para viver desenhando. Mas eu posso desenhar sem ser arquiteta, apenas sendo eu mesma, e é isto que venho fazendo.
Ontem um pássaro passou sobre os meus cabelos e me achei de uma sorte tão grande. Muito obrigada, pássaro.
Sempre acho que estou surda de um ouvido, geralmente o ouvido direito. Isso é apenas para mudar de assunto. Para dizer que quando o dia acaba o tempo é meu e eu posso fazê-lo como quiser. Que eu acho um desperdício essa minha mania de nunca me sujar. E fui ao parque ver como as pessoas jogam futebol porque isso é uma coisa que eu não compreendo - há tantas outras coisas para se fazer!
Os pratos na pia eu deixo porque quero porque a casa é minha e moro sozinha - tenho sempre morado sozinha. Mas só para me contrariar as vezes vou lá e lavo tudo e deixo a casa muito sem graça de tão organizada. Disso eu não gosto, então já vou deixando minhas meias espalhadas por todos os cantos e convido os gatos a entrarem se não forem me atacar. Eu sempre achei gato tão delicado, independente e elegante mas, assim como ele não quer papo comigo, nunca quis papear. O que eu gosto nele é ele não precisar de mim e gostar da minha companhia só porque quer.
A menina do fim da rua compra pela foto da embalagem e ir ao supermercado tornou-se uma rotina dolorosa, pois levo 3 horas para não entender nada. Agora, pego tudo pela gravura e dou um voto de confiança aos alimentos. Mas, também, só como macarrão, sorvete e, nas sextas-feiras, chocolate. Também tomo muito leite porque se assim não o fosse eu não seria eu. Eu sempre acho que leite salva a gente de tudo e você pode até parar de comer e só tomar leite para o resto da vida que você nunca vai morrer de inanição - é que quando eu era uma criança minha mãe mandava eu tomar leite quando estava com fome.
Me aventurei uns passos além do portão da minha casa, até entro no ônibus que, me alertaram, tem ainda os parafusos da ex-URSS. E o que tem isso? Você já viu os ônibus do país que eu venho?! Vamos caminhar mais uns mil metros com o sol longe do rosto para uma rua sem saída pois eu só quero prestar atenção aos pequenos detalhes. O resto nada importa, dada a grande relevância. Na verdade, eu queria muito nutrir as minhas sardas no rosto e, por isso, deveria tomar um banho, uma enxurrada de sol! Deixa para outro dia.
Algumas vezes, me dou um agrado que é parar em uma padaria de esquina, muito desconfiada que estou, e comprar um doce ou biscoito. Pronto, dito e feito. Ruim e sem graça e sem gosto e sem açúcar - ah, como a minha vida tinha sido doce até aqui! Coloquei muito leite condensado em tudo.
A menina do fim da rua pôs um moletom e fui correr. Mas, antes, peguei de novo o ônibus pois fui encontrar com uma amiga em um lugar muito longe. A amiga tinge o cabelo de amarelo e tem cor de cenoura pois ela vai para uma das clinicas de bronzeamento artificial que lhe deixam laranja e estão em toda e cada esquina da cidade. Ao aguardar o ônibus na volta, gosto de me demorar um pouco porque fico a observar os meninos a conversar e fico tentando adivinhar o que eles estudam. Me interessa muito o que as pessoas estudam. Mas há pessoas que não estudaram nada, mas leram e viveram muito e sabem tudo - eu conheço uma pessoa assim bem próxima de mim e eu posso perguntar tudo a ele pois ele me responde de graça. Outras coisas, no entanto, eu é que tenho que contar a ele.
Eu nunca compro muita coisa, eu sempre acho que amanhã já chega logo. Observei um disco tocando lá dentro daquela janela - eu estou sempre bisbilhotando as janelas, mas juro que é por causa do design, mas acabo vendo o que há dentro - pessoas, música, álcool e amor. E meus olhos. Uma coisa que notei aqui é que tudo é velho, mas dentro dos prédios, logo além das janelas, as pessoas e coisas são jovens.
Vou-me parando por aqui pois já estamos quase no fim da rua e por entre os galhos secos esconde a noite e já vem para definir tudo.
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