19 de abr. de 2015

O sopro do coração

O sopro do coração segue sua própria intuição e vive sua própria história.

O sopro do coração é leve como os ventos do sul que levam para o norte. Mora ao lado do número 2. Se parece com um papel de presente. Reside em uma caixinha no canto do armário. Olha pela janela de forma tímida. Alegra-se com as folhas secas que caem das árvores e avisam da renovação que se dará em breve.

O sopro do coração percorre as estradas que levam para longe. Não há importância alguma se há casas abandonadas ao redor porque, embora triste, ela bem que gosta desses locais vazios repletos de memória. O sopro do coração escreve-se em um caderno espiral pesado, pois ele é recheado dos assuntos importantes. E, enquanto disso, repara-se no decorrer dos dias.

O sopro do coração é como a primeira avenida asfaltada da América, em Motown. E como todas as outras tantas coisas que ela sabe e guarda em segredo sobre os lugares preciosos em que pisou. Em alguns, ela até morou e viveu. E mais: ela existiu. E alimentou com um sopro do coração.

Sopros ao coração são os moletons no frio, a gastura de andar de meia pela casa, as manhãs de sábado cheias de futuro, as caminhadas pelas ruas desertas de Budapeste, a mania de fazer voz para os cães como se eles falassem, o brilho em seus olhos ainda que escuros, aventurar-se por um ônibus da ex-URSS, e o riso gratuito ao fim do dia.

O sopro do coração pesa como uma luva leve ao tocar em suas mãos. Direciona a escrita. Parece uma luz ao fim do túnel. Soa como um plano do governo para melhorar a qualidade de vida - e isto tudo tem um nome tão mais bonito: welfare state. Enquanto isso, o dia vem caindo e a noite sobe como uma luz em direção ao infinito azul escuro que instala-se antes do anoitecer.

Já pensou em quantos dedos na mão tem aquela menina? E porque se sentiria presa, motionless e tantas outras coisas mais, nessa definição de palavras? Para que uma janela tão alta ao seu lado em uma hora nada conveniente como essa?

O sopro do coração deixou meus cabelos, sempre castanhos, presos e a brigar com o vento. Desenhei algo para então colorir, mas apaguei. Escrevi então um bilhete e coloquei inspiração. Cozinhei algo pois só o faco para a minha sobrevivência. Busquei o talento na gaveta da cozinha enquanto grifava poesia nos livros empoeirados mas sempre cheios de ternura. Observei as pessoas lá  embaixo e fui arremetida por um pensamento. Tentei cantar uma música em minha cabeça, mas eu nunca me lembro da letra, apenas dos sons. Mordi a tampa da caneta, notei como os meus lábios estavam secos, lembrei-me de como adoro espirrar, e de como sempre descuido da minha saúde.

O sopro do coração envolveu-me em um abraço. Deixou seu cheiro e seu recado. Me fez recordar quem sou e ainda incitou a dúvida, como em uma página em branco em um dos meus vários cadernos. O sopro do coração é imenso e toma conta de mim como a saudade que sinto o tempo inteiro da minha irmã. As horas passam mas se houver tempo de prestar atenção, com muita sensibilidade nestes dias ocos, sente-se o sopro do coração.

O sopro do coração faz-me quem verdadeiramente sou.

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