Partir não é deixar de ser, porque tudo continua sendo, mesmo que apenas existindo.
Partir não é deixar de ser: é só andar quatrocentos passos à frente e, depois, virar à esquerda. Poderia também ser à direita. Acho que tanto faz.
Partir não é deixar de ser, porque partistes deste mundo e mesmo assim você tem estado: hoje mesmo falamos de você. Ou melhor, escrevemos. Ela me perguntou como você era, como você era comigo e como éramos juntos. Tudo uma questão de ser: logo você, que nunca deixou de ter sido.
Partir não é deixar de ser: partir pode ser como começar um outro sentido.
Você partiu e, partindo-nos todos ao meio, sempre continuou, pelo menos para mim, a ser inteiro. Você, o mais inteiro de todos os homens.
Partir não é nunca deixar de ser: olha tudo o que você tem sido, mesmo ausente, mesmo tão longe, mesmo estando sem estar.
A voce, que partiu mas não foi partido: eu espero que, ainda que partindo, estejas a caminhar. Olho de longe os seus passos de pés abertos, vendo aonde eles vão te levar. Você, que vai, parte mas continua: partir não é deixar de ser. E, você, só tem sido. Tanto.
29 de out. de 2017
19 de out. de 2017
De repente, uma batida na porta
Era de repente, e era uma batida na porta.
Uma batida na porta tinha todos os sons bonitos que eu ouvira na vida: a música dos meus grupos musicais, a sua voz do seu jeito, os sotaques que eu achava bonito, as palavras que eu ouvi e me marcaram, o caminhar dos passos das pessoas que me inspiram e o barulho do vento num dia frio à noite.
Uma batida na porta era algo tão suave que eu até esquecia que existia, que viria, que chegava. Era também tão intensa - mas nunca pesava, porque sempre leve - que me abria os olhos e me fazia olhar.
Uma batida na porta chegou num dia que eu nem sabia que existia: mas estava lá.
Eu estava rodeando o quarteirão, cantando do meu jeito aquelas meia melodias que soavam inteiras, segurando um copo d'água na mão, pesquisando as estatísticas do governo, planejando a próxima viagem, sentido todo o sentimento que cabia dentro de mim, pondo a roupa para lavar, dirigindo meu carro até o supermercado, correndo à noite, dormindo de madrugada, visitando a livraria, às vezes ficando indignada, indo ao cinema toda semana, escrevendo uma coisa ou outra... - mas o mais que eu estava fazendo quando chegara a batida na porta era vivendo.
Uma batida na porta veio do lado de lá: antes que ela visse que eu a vira eu já estava olhando.
E sentindo, e pensando, e pedindo, e desejando, e esperando, e desistindo, e acreditando, e criando, e esquecendo, e duvidando, e o que eu mais fazia: eu estava vivendo.
Uma batida na porta nem parece, mas tem uma cor: é azul.
Uma batida na porta nem parece, mas aparece.
Uma batida na porta é.
Uma batida na porta tinha todos os sons bonitos que eu ouvira na vida: a música dos meus grupos musicais, a sua voz do seu jeito, os sotaques que eu achava bonito, as palavras que eu ouvi e me marcaram, o caminhar dos passos das pessoas que me inspiram e o barulho do vento num dia frio à noite.
Uma batida na porta era algo tão suave que eu até esquecia que existia, que viria, que chegava. Era também tão intensa - mas nunca pesava, porque sempre leve - que me abria os olhos e me fazia olhar.
Uma batida na porta chegou num dia que eu nem sabia que existia: mas estava lá.
Eu estava rodeando o quarteirão, cantando do meu jeito aquelas meia melodias que soavam inteiras, segurando um copo d'água na mão, pesquisando as estatísticas do governo, planejando a próxima viagem, sentido todo o sentimento que cabia dentro de mim, pondo a roupa para lavar, dirigindo meu carro até o supermercado, correndo à noite, dormindo de madrugada, visitando a livraria, às vezes ficando indignada, indo ao cinema toda semana, escrevendo uma coisa ou outra... - mas o mais que eu estava fazendo quando chegara a batida na porta era vivendo.
Uma batida na porta veio do lado de lá: antes que ela visse que eu a vira eu já estava olhando.
E sentindo, e pensando, e pedindo, e desejando, e esperando, e desistindo, e acreditando, e criando, e esquecendo, e duvidando, e o que eu mais fazia: eu estava vivendo.
Uma batida na porta nem parece, mas tem uma cor: é azul.
Uma batida na porta nem parece, mas aparece.
Uma batida na porta é.
2 de out. de 2017
E se amanhã o medo
E se amanhã o medo?
Parece que eu nem terminei de falar, mas é frase completa.
O som da entonação nos diria que é pergunta feita. Mas eu nem ouso - nem ouso - perguntar.
E se amanhã o medo ... eu paro e olho uma rua ali na esquina que é quase aqui agora.
E se amanhã o medo ... eu viro para o meu lado esquerdo, sigo reto e não caminho. Dei uns passos cor azul-piscina, abaixei o olhar. Era amanhã de novo, mas parecia hoje em dia.
Hoje em dia, que é quase de noite: olho a hora no relógio. Já reparou como as horas são sempre uma, sempre únicas e sempre singulares? Ainda que sejam duas horas, essa hora é só uma: ela é só ela. Inteirinha. Ainda que seja um quarto de hora. Ou meio dia. Ou quinze para as três. E assim, inteiros, somos todos nós - alguns, mais do que os outros. E, entre esses alguns, você e eu.
Mas vamos voltar para o amanhã e o medo que está hoje: o medo não é, mas ele está. Está aqui neste momento. Está estático. Anda em ondas em seu movimento. Vem e bate de repente, nos sacode até nos acordar: veja e olha, diz o medo.
Quando eu paro em uma esquina, eu paro e penso: e se amanhã o medo?
E se amanhã amanhecer de dia, bem na hora em que eu acordar? E se eu pisar na grama e senti-la? E se eu atravessar a rua enquanto os carros estão parados? E se eu tiver tempo e chance e sensibilidade para olhar os detalhes daquele tom de cor em que foi pintado um muro sem vida? -- Ah! E se amanhã o medo?!
Eu me chamo um nome e sou. Eu sou uma pessoa vivida, viva, vivente e vivaz. Muitos dizem que o verbo é existir, mas eu digo: vá além.
E se o amanhã chegar, eu vou olhar e sentir. Eu vou olhar e parar. Eu vou olhar e repetir o nome enquanto escuto a minha voz.
E se amanhã o medo chegar?
Parece que eu nem terminei de falar, mas é frase completa.
O som da entonação nos diria que é pergunta feita. Mas eu nem ouso - nem ouso - perguntar.
E se amanhã o medo ... eu paro e olho uma rua ali na esquina que é quase aqui agora.
E se amanhã o medo ... eu viro para o meu lado esquerdo, sigo reto e não caminho. Dei uns passos cor azul-piscina, abaixei o olhar. Era amanhã de novo, mas parecia hoje em dia.
Hoje em dia, que é quase de noite: olho a hora no relógio. Já reparou como as horas são sempre uma, sempre únicas e sempre singulares? Ainda que sejam duas horas, essa hora é só uma: ela é só ela. Inteirinha. Ainda que seja um quarto de hora. Ou meio dia. Ou quinze para as três. E assim, inteiros, somos todos nós - alguns, mais do que os outros. E, entre esses alguns, você e eu.
Mas vamos voltar para o amanhã e o medo que está hoje: o medo não é, mas ele está. Está aqui neste momento. Está estático. Anda em ondas em seu movimento. Vem e bate de repente, nos sacode até nos acordar: veja e olha, diz o medo.
Quando eu paro em uma esquina, eu paro e penso: e se amanhã o medo?
E se amanhã amanhecer de dia, bem na hora em que eu acordar? E se eu pisar na grama e senti-la? E se eu atravessar a rua enquanto os carros estão parados? E se eu tiver tempo e chance e sensibilidade para olhar os detalhes daquele tom de cor em que foi pintado um muro sem vida? -- Ah! E se amanhã o medo?!
Eu me chamo um nome e sou. Eu sou uma pessoa vivida, viva, vivente e vivaz. Muitos dizem que o verbo é existir, mas eu digo: vá além.
E se o amanhã chegar, eu vou olhar e sentir. Eu vou olhar e parar. Eu vou olhar e repetir o nome enquanto escuto a minha voz.
E se amanhã o medo chegar?
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