Minha irmã já não escreve uns versinhos, nem uns versinhos a minha irmã escreve mais.
Eu, um dia, até tentei pegar em sua mão para lhe ensinar a escrever. Este é o papel da irmã mais velha. E isso foi uma vida inteira - o escrever tem muitas formas.
E eu peguei em sua mão para lhe ensinar a escrever. Eu repito, porque é o que acontece quando o repete é vivido de novo. Esse tal repetir.
Mais tarde, chegou esta vez de novamente: é que a a vida cria muitas oportunidades. E minha irmã tentou: minha irmã leu uns versinhos.
Mas minha irmã não os escreve: minha irmã já não escreve versinhos.
E como é que se vive? Como é que se vive sem escrever?
E como é que se vive? Como é que se vive sem ser escrita? Sem escreverem para você?
Eu só me formo inteira por palavras, que me constroem de significados. Mas eu não a voicero (talvez eu tenha inventado esta palavra para o que significa dizer, só que com a voz). É que eu só falo escrevendo.
E minha irmã não escreve. Nem uns versinhos minha irmã escreve mais.
1 de dez. de 2018
25 de nov. de 2018
Vestígios
Fico guardando os traços pelos cantos.
Fico guardando os cantos como se precisassem ser olhados.
Fico acendendo a luz e mantendo tudo o que é seu: há letras com palavras escritas no bloco na gaveta da sala, na garrafa de água na geladeira e na vasilha da cozinha.
Tua letra é curvada, quase gordinha.
Tua letra também é sua.
E o bloco anotado, com o nome de não-sei-quem na sala, tem sempre a primeira página ali, por estar: eu a movo para um lado e sempre só escrevo na próxima. Não posso te apagar.
Há também os livros que são teus. Não muitos (eu não conheço ninguém que tenha mais livros do que eu), mas sempre seus. Eu olho a capa e já logo vejo: é nome estrangeiro, é palavra que eu nem sei ler. Teríamos mesmo, nós duas, o mesmo sangue?
Gosto de guardar os detalhes de você aqui comigo pela casa. Parece que daqui você nunca saiu e é como se fizesse parte da minha vida ainda. É como se você existisse nos meus dias, quando já se foi.
Chego a olhar para mim com um respeito que soa quase como um amor: abro a geladeira vestida de uma blusa amarela, que eu nunca compraria, mas que você me deu porque era sua e você não quis mais; encosto na garrafa com cuidado, porque tem seu nome; sirvo-me daquela água que bebo; e ligeiramente me olho com rabo de olho: é tudo muito tão rápido (assim, nesta intensidade), uma linha entre eu-e-você, como um você-e-eu.
Eu, que te olho daqui para aí tão longe, te vejo. Eu penso nessas coisas boas todas que você as tem e as desejo muito.
E, então, como um sopro do coração eu logo escuto (é quase um recordar): eu vim primeiro.
Se és assim, é porque me puxou: você é que se parece comigo.
Fico guardando os cantos como se precisassem ser olhados.
Fico acendendo a luz e mantendo tudo o que é seu: há letras com palavras escritas no bloco na gaveta da sala, na garrafa de água na geladeira e na vasilha da cozinha.
Tua letra é curvada, quase gordinha.
Tua letra também é sua.
E o bloco anotado, com o nome de não-sei-quem na sala, tem sempre a primeira página ali, por estar: eu a movo para um lado e sempre só escrevo na próxima. Não posso te apagar.
Há também os livros que são teus. Não muitos (eu não conheço ninguém que tenha mais livros do que eu), mas sempre seus. Eu olho a capa e já logo vejo: é nome estrangeiro, é palavra que eu nem sei ler. Teríamos mesmo, nós duas, o mesmo sangue?
Gosto de guardar os detalhes de você aqui comigo pela casa. Parece que daqui você nunca saiu e é como se fizesse parte da minha vida ainda. É como se você existisse nos meus dias, quando já se foi.
Chego a olhar para mim com um respeito que soa quase como um amor: abro a geladeira vestida de uma blusa amarela, que eu nunca compraria, mas que você me deu porque era sua e você não quis mais; encosto na garrafa com cuidado, porque tem seu nome; sirvo-me daquela água que bebo; e ligeiramente me olho com rabo de olho: é tudo muito tão rápido (assim, nesta intensidade), uma linha entre eu-e-você, como um você-e-eu.
Eu, que te olho daqui para aí tão longe, te vejo. Eu penso nessas coisas boas todas que você as tem e as desejo muito.
E, então, como um sopro do coração eu logo escuto (é quase um recordar): eu vim primeiro.
Se és assim, é porque me puxou: você é que se parece comigo.
19 de out. de 2018
Acaso sou eu guardador do meu irmão?
Como diria Lispector:
"Porque nem sempre posse ser a guarda de meu irmão, e não posso mais ser a minha guarda, ah não me quero mais"
Eu, que tenho-te guardado, velado e guiado quando dou meus passos à frente. Veja e olha: eis que eu te guio até quando não caminho.
Eu, que tenho guardado o que tens feito comigo: desde que nasceu, já me lembro mais.
Mas a guarda não sou eu. Nem sua sereis guardadora de nada. Nada me foi depositado. Nunca aceitei. A ti não tenho que guardar. Guardo-me inteirinha, assim, de você, para me preservar de ti.
Acaso sou eu a guarda da minha irmã?
Eu, que guardo o guardado, em minhas mãos entrelaço, estou pronta para desfazer o laço.
30 de set. de 2018
Menina, que sua altura é de uma estatura tão alta
A altura da saudade:
a saudade tem a cor dos olhos teus. É de um verde estonteante a contrastar com os edifícios sem cores que ficam atrás da gente quando a gente posa para fotos que pedimos a estranhos para tirar. Se eu olho rápido, seus olhos me parecem cinza.
A saudade tem 2 metros de altura, dá passos largos devagar, veste um casaco de frio comprido e preto, e parece que te abraçou a se prender em mim.
A saudade cortou os cabelos nos ombros, nunca mais tingiu os fios de castanho, deu explicação a mim.
A saudade subiu as escadas, como eu informei, para entrar na drogaria, mas esqueceu de comprar a escova de dente que tinha ido procurar. Subiu os degraus, entrou no supermercado, não teve pressa. Andou pelos corredores, se relacionou bem com a minha indecisão, pediu para eu escolher entre um produto e outro, e escolheu para nós duas: levar duas embalagens de húmus - já que eu gosto, leve duas. Ali mesmo, no supermercado, ela olhou as promoções, reforçando os esteriótipos de como são os alemães, sem saber que eu estava olhando. Ela olhou para mim e sorriu.
Nos perdíamos nos corredores - ela tinha ido arrumar uma caixa para carregar as comprar. Ela é de uma nacionalidade tão ágil e tão prática e tão eficiente. Eu fico pensando até onde esses esteriótipos são construções e a partir de onde são verdade.
A saudade tem uma presença tão suave! Dessa que vem e que fica. Ela, que incorpora o que a palavra saudade vem agora significar, com toda a sua estatura de 2 metros de altura, é sempre leve em seu andar. A sua presença parece um sussurro: ela fala tão baixo que eu adoro escutar e peço a ela para repetir para mim. Ei, me diz de novo o meu nome - você me chama de um jeito que só outra pessoa me chama. Para você, eu posso ser, sim, Marcía. Mas, meu nome é Márcia.
A saudade, nela, pega o percurso, espera o metro passar, se agacha para ficar mais parecida comigo no tamanho, ri de nós duas na rua, conversa com estranhos e é gentil. Meu deus, e os esteriótipos? Ora ela reforça, ora ela desconstrói - já sei: ela só performa o que é bom. Ela carrega a caixa com as nossas compras, entra no tram number 5 decorado com as fotos de Van Gogh depois de mim. Fica em pé, enquanto eu levo a nossa caixa, mas senta logo depois, à minha frente, de onde tira fotos minhas, que morro de vergonha, e de onde eu olho para ela sem piscar. Como pode ser assim tão linda? Eu a acho assim tão linda. Eu a vejo assim, porque foi assim que eu aprendi a olhar.
A saudade me ajuda a escolher o sabor do sorvete, mas nem toma. Escolhe pimentões vermelhos. Faz sua própria comida, do seu jeito. Senta à mesa, logo à minha frente, e começa a conversar. Dividimos segredos não ditos que agora são falados. Faz 8 anos desde que nos vimos pela primeira e última vez, no Wyoming, aquele lugar de neve. E nem parece. E nem parece, ela me escreveu depois.
A saudade tem voz e fala. E eu tenho ouvidos e ouço. Vez ou outra, recito seu nome: é estrangeiro, eu não ouso falar. Mas voce, menina, com a sua altura, toda estatura, e o seu caminhar, se chegar mais perto, vem.
E eu te chamo pelo nome. Aquele, que é segredo, mas você me contou.
a saudade tem a cor dos olhos teus. É de um verde estonteante a contrastar com os edifícios sem cores que ficam atrás da gente quando a gente posa para fotos que pedimos a estranhos para tirar. Se eu olho rápido, seus olhos me parecem cinza.
A saudade tem 2 metros de altura, dá passos largos devagar, veste um casaco de frio comprido e preto, e parece que te abraçou a se prender em mim.
A saudade cortou os cabelos nos ombros, nunca mais tingiu os fios de castanho, deu explicação a mim.
A saudade subiu as escadas, como eu informei, para entrar na drogaria, mas esqueceu de comprar a escova de dente que tinha ido procurar. Subiu os degraus, entrou no supermercado, não teve pressa. Andou pelos corredores, se relacionou bem com a minha indecisão, pediu para eu escolher entre um produto e outro, e escolheu para nós duas: levar duas embalagens de húmus - já que eu gosto, leve duas. Ali mesmo, no supermercado, ela olhou as promoções, reforçando os esteriótipos de como são os alemães, sem saber que eu estava olhando. Ela olhou para mim e sorriu.
Nos perdíamos nos corredores - ela tinha ido arrumar uma caixa para carregar as comprar. Ela é de uma nacionalidade tão ágil e tão prática e tão eficiente. Eu fico pensando até onde esses esteriótipos são construções e a partir de onde são verdade.
A saudade tem uma presença tão suave! Dessa que vem e que fica. Ela, que incorpora o que a palavra saudade vem agora significar, com toda a sua estatura de 2 metros de altura, é sempre leve em seu andar. A sua presença parece um sussurro: ela fala tão baixo que eu adoro escutar e peço a ela para repetir para mim. Ei, me diz de novo o meu nome - você me chama de um jeito que só outra pessoa me chama. Para você, eu posso ser, sim, Marcía. Mas, meu nome é Márcia.
A saudade, nela, pega o percurso, espera o metro passar, se agacha para ficar mais parecida comigo no tamanho, ri de nós duas na rua, conversa com estranhos e é gentil. Meu deus, e os esteriótipos? Ora ela reforça, ora ela desconstrói - já sei: ela só performa o que é bom. Ela carrega a caixa com as nossas compras, entra no tram number 5 decorado com as fotos de Van Gogh depois de mim. Fica em pé, enquanto eu levo a nossa caixa, mas senta logo depois, à minha frente, de onde tira fotos minhas, que morro de vergonha, e de onde eu olho para ela sem piscar. Como pode ser assim tão linda? Eu a acho assim tão linda. Eu a vejo assim, porque foi assim que eu aprendi a olhar.
A saudade me ajuda a escolher o sabor do sorvete, mas nem toma. Escolhe pimentões vermelhos. Faz sua própria comida, do seu jeito. Senta à mesa, logo à minha frente, e começa a conversar. Dividimos segredos não ditos que agora são falados. Faz 8 anos desde que nos vimos pela primeira e última vez, no Wyoming, aquele lugar de neve. E nem parece. E nem parece, ela me escreveu depois.
A saudade tem voz e fala. E eu tenho ouvidos e ouço. Vez ou outra, recito seu nome: é estrangeiro, eu não ouso falar. Mas voce, menina, com a sua altura, toda estatura, e o seu caminhar, se chegar mais perto, vem.
E eu te chamo pelo nome. Aquele, que é segredo, mas você me contou.
29 de set. de 2018
Meu silêncio não tenho motivo
O meu silêncio não tem motivo.
Não falo porque não tenho nada a escrever.
Tudo o que escrevo foi vivido, e o viver não tem limite. O viver não dá-me tempo. O viver por si só basta. O que resta é o escrever: por isso, parece resto. Mas não é. Mas, agora, tem sido.
Meu silêncio não tem motivo: não tenho nada a dizer. O que falar sobre o que não foi dito?
O que dizer sobre o que está feito?
Meu silêncio não tem motivo, mas, quando lembro da causa, até susto eu tomo. Assustei. E que susto!
Todo dia me assusto. Aliás, todo dia, não. Todo dia eu me assustei. Todo dia eu me assustava. Mas, como diz a conjugação do verbo, isso foi no passado. Me acostumei com esse modo de girar da vida de novo. Mas ainda há resquício de inocência em mim: vira e mexe eu esqueço e, então, eu me assusto.
Meu silêncio não tem motivo, e é isso: é o susto.
Eu não tenho motivo nenhum porque, se há, não é meu.
Não escrevi essa história, quem a viveu não foi eu. Tudo saiu do seu jeito porque eu saí antes. Não teve eu nessa participação e por isso saiu assim. Estou sendo repetitiva? A história, desse jeito assim contada, desse modo assim vivida ... é sua. E não sou eu.
Meu silêncio não tem motivo: eu olho e vejo e me lembro e fico sem motivo. Não há porquê, não há para quê. Não há mais reação porque reagir é fazer alguma coisa. E, nesse caso, fazer é um não ato. Aceitar é agir. Aceito.
Meu silêncio não tem motivo. Mas não há motivo suficiente, não há motivo existente para me fazer falar. Por isso, não escrevo.
Não há motivo. Você não é motivo, você não é motivo suficiente, você não é motivo existente... porque, se você vive, eu não tenho nem conhecimento. Mas creio que você deva, sim, daí, existir.
Mas, meu querido: meu silêncio não tem motivo. Não há motivo algum. Nenhum, mesmo. És querido.
Eis que falo: meu silêncio não tem motivo.
Não falo porque não tenho nada a escrever.
Tudo o que escrevo foi vivido, e o viver não tem limite. O viver não dá-me tempo. O viver por si só basta. O que resta é o escrever: por isso, parece resto. Mas não é. Mas, agora, tem sido.
Meu silêncio não tem motivo: não tenho nada a dizer. O que falar sobre o que não foi dito?
O que dizer sobre o que está feito?
Meu silêncio não tem motivo, mas, quando lembro da causa, até susto eu tomo. Assustei. E que susto!
Todo dia me assusto. Aliás, todo dia, não. Todo dia eu me assustei. Todo dia eu me assustava. Mas, como diz a conjugação do verbo, isso foi no passado. Me acostumei com esse modo de girar da vida de novo. Mas ainda há resquício de inocência em mim: vira e mexe eu esqueço e, então, eu me assusto.
Meu silêncio não tem motivo, e é isso: é o susto.
Eu não tenho motivo nenhum porque, se há, não é meu.
Não escrevi essa história, quem a viveu não foi eu. Tudo saiu do seu jeito porque eu saí antes. Não teve eu nessa participação e por isso saiu assim. Estou sendo repetitiva? A história, desse jeito assim contada, desse modo assim vivida ... é sua. E não sou eu.
Meu silêncio não tem motivo: eu olho e vejo e me lembro e fico sem motivo. Não há porquê, não há para quê. Não há mais reação porque reagir é fazer alguma coisa. E, nesse caso, fazer é um não ato. Aceitar é agir. Aceito.
Meu silêncio não tem motivo. Mas não há motivo suficiente, não há motivo existente para me fazer falar. Por isso, não escrevo.
Não há motivo. Você não é motivo, você não é motivo suficiente, você não é motivo existente... porque, se você vive, eu não tenho nem conhecimento. Mas creio que você deva, sim, daí, existir.
Mas, meu querido: meu silêncio não tem motivo. Não há motivo algum. Nenhum, mesmo. És querido.
Eis que falo: meu silêncio não tem motivo.
16 de fev. de 2018
Você se senta logo à minha frente
Você se senta logo à minha frente: desta vez você não está indo, nem está chegando, não está com pressa, não se esconde nem se despede - você senta logo à minha frente.
Ali está a mesa e, na ponta, você se senta logo à minha frente.
Eu olho você e olhar você é como te ver: eu te vejo outra vez. Eu te vejo mais uma vez, e não apenas uma vez somente.
Você se senta logo à minha frente com um sorriso largo. É isso que sai de você quando você se senta e deixa eu te ver: eu olho e vejo o seu sorriso.
Dessa vez, você se senta logo à minha frente. Você, cujos passos nunca contei, cujo paradeiro não sei, cujos dias me são todos iguais mas diferentes pois não sei em qual deles você vive.
Ali, você se senta logo à minha frente. Você não corre, e não anda, e não caminha, e não vai. Você fica, e se senta, e logo à minha frente.
Você, logo à minha frente. Você, que está sempre à minha frente, pois assim eu te vejo. Você, sempre à frente, só que lá atrás, num lugar que eu trouxe comigo. Você, sim, você: à minha frente, só que atrás.
Ali está a mesa e, na ponta, você se senta logo à minha frente.
Eu olho você e olhar você é como te ver: eu te vejo outra vez. Eu te vejo mais uma vez, e não apenas uma vez somente.
Você se senta logo à minha frente com um sorriso largo. É isso que sai de você quando você se senta e deixa eu te ver: eu olho e vejo o seu sorriso.
Dessa vez, você se senta logo à minha frente. Você, cujos passos nunca contei, cujo paradeiro não sei, cujos dias me são todos iguais mas diferentes pois não sei em qual deles você vive.
Ali, você se senta logo à minha frente. Você não corre, e não anda, e não caminha, e não vai. Você fica, e se senta, e logo à minha frente.
Você, logo à minha frente. Você, que está sempre à minha frente, pois assim eu te vejo. Você, sempre à frente, só que lá atrás, num lugar que eu trouxe comigo. Você, sim, você: à minha frente, só que atrás.
26 de nov. de 2017
Buda e Peste formam um só lugar: Budapeste
Aquele era um lugar como outro qualquer: só que diferente.
Era mais perto, só que mais longe. Era também mais monocromático: sim, Budapeste era de uma cor só, e a sua cor era amarelo. Todos os lugares eram amarelos, até os cantinhos eram amarelos, e as esquinas eram amarelas ou sem cor nenhuma. Se havia cor, era eu quem colocava. Eu.
Budapeste era como lugar nenhum: até hoje não acredito que eu tenha chegado até lá. Que eu tenha decido no aeroporto, atravessado a porta, entrado em um táxi e atravessado a cidade à noite, me sentindo em um livro de história no capítulo a partir da segunda guerra mundial - e depois.
Os dias que passaram me trouxeram a saudade de quem eu tinha sido, das pessoas que cruzaram o meu caminho, das que tem estado aqui até hoje, dos lugares escondidos. Do caderno no qual eu escrevia à beira do Danúbio, de capa listrada azul claro, que custou 0,50 centavos. Budapeste era tao barata e eu era milionária, como sempre fui, só que mais, só que no instante agora, naquele momento.
Quando Budapeste passa bem à minha frente, sinto saudade do medo que eu sentia; da língua que, para mim, era xingada; das linhas de metrô que me deixavam perdida no pensar e nas cores, mas me levavam aos lugares; dos passeios com as pessoas que me levavam pela mão; das comidas e sorvetes baratos; das passagens de trem, ônibus, avião a preços irrisórios; da escola de dança na esquina da minha casa, que mais parecia um edifício de tortura praticada pelo governo; da família de ciganos que se mudou para o bairro e chocou o restante da população; do bairro VIII, o mais temido e, por isso, o que mais despertava o meu interesse; do exagero das pessoas ao contar suas histórias; do mau humor estampado no rosto das pessoas e eu, na doçura de ser quem sou; as janelas que se fechavam até nas mínimas frechas e fazia qualquer quarto parecer sala de cinema no meio da tarde; dos passos sem rumo; das árvores com formatos estranhos; de só saber a sigla para as ruas; do parque ao lado e ao fim da rua e logo à frente e em todo lugar; o "melhor bolo da Hungria" que, na verdade, não tinha gosto de nada; da casa das pessoas; das barracas nas ruas; do alívio de encontrar uma padaria; das pessoas que sorriam para mim sem dentes e eu ficava horrorizada, mas sorria de volta, porque sou um amor de pessoa com dentes lindos, brancos e perfeitos, ainda mais na Hungria; de nunca comer nada porque eu achava tudo gorduroso demais; de não comer nada porque eu só sabia cozinhar macarrão; do pão com molho e presunto que, de repente, virou a coisa mais gostosa que eu conhecia; dos infinitos salames que colocaram na minha geladeira e eu nunca comi; da janela que ia do teto ao chão e me fazia sentir medo à noite; do armário embutido no fim da cozinha que era a travessia para outro mundo; do gato que sempre vinha me visitar; de pendurar roupa no varal e morrer vergonha do meu vizinho ver; dos jardineiros mexicanos que eram, no máximo, ciganos; das falcatruas do governo; das amigas que eu fiz; dos amores por quem me apaixonei, vivi e trouxe comigo; da catedral ao fim da rua com suas torres onipotentes (não é bem essa a palavra); de comer cheesecake em qualquer café; dos pães doces que eram bonitos e gostosos, mas me preocupavam por serem de farinha branca; das bicicletas; de caminhar o dia inteiro; da praça dos drogados; do homem que escondia um rato dentro de suas roupas; dos ônibus da época da união soviética que ainda rodavam pelo centro; de correr de madrugada até chegar no meu portão, quando eu voltava sozinha para casa; das bebidas baratas que eu nem bebia; de passar na frente ao cemitério que um dia eu iria visitar; das construções na rua que só acrescentavam àquela confusão toda; dos olhares estrangeiros; de nunca saber em qual entrada do metrô entrar, nem em qual saída sair; de ir ao supermercado e não entender nada; de dividir a chave e ficar presa do lado de fora de casa; de ir comer hambúrguer no meio da semana, de um dia qualquer que era dia especial só porque existíamos; de planejar viagens que, antigamente, pareciam uma excursão para outro planeta; de ouvir as pessoas falarem e contarem os casos de sua vida quando, na verdade, eu só queria ficar ali, sozinha, olhando e sendo; de como estacionavam os carros no passeio e eu achava um absurdo; de comprar chocolate só às sextas-feiras; de tomar sorvete de baunilha que me dava dor de barriga; de ir ao Aldi e achar tudo barato; de toda rua parecer a última parada da civilização; de infinitas lindas pontes que cruzávamos sem parar; de sair à noite para dançar e congelar de frio, querendo só voltar para casa; da pizza de madrugada que era quase de graça; das igrejas ortodoxas nas quais me aventurava e onde me mandavam usar véu sobre os meus cabelos; da revista de graça em inglês, que era a única coisa possível de ler além dos livros que trouxe comigo; de ser amiga dos amigos das minhas amigas; dos convites inusitados; da coragem de ser quem é.
Era mais perto, só que mais longe. Era também mais monocromático: sim, Budapeste era de uma cor só, e a sua cor era amarelo. Todos os lugares eram amarelos, até os cantinhos eram amarelos, e as esquinas eram amarelas ou sem cor nenhuma. Se havia cor, era eu quem colocava. Eu.
Budapeste era como lugar nenhum: até hoje não acredito que eu tenha chegado até lá. Que eu tenha decido no aeroporto, atravessado a porta, entrado em um táxi e atravessado a cidade à noite, me sentindo em um livro de história no capítulo a partir da segunda guerra mundial - e depois.
Os dias que passaram me trouxeram a saudade de quem eu tinha sido, das pessoas que cruzaram o meu caminho, das que tem estado aqui até hoje, dos lugares escondidos. Do caderno no qual eu escrevia à beira do Danúbio, de capa listrada azul claro, que custou 0,50 centavos. Budapeste era tao barata e eu era milionária, como sempre fui, só que mais, só que no instante agora, naquele momento.
Quando Budapeste passa bem à minha frente, sinto saudade do medo que eu sentia; da língua que, para mim, era xingada; das linhas de metrô que me deixavam perdida no pensar e nas cores, mas me levavam aos lugares; dos passeios com as pessoas que me levavam pela mão; das comidas e sorvetes baratos; das passagens de trem, ônibus, avião a preços irrisórios; da escola de dança na esquina da minha casa, que mais parecia um edifício de tortura praticada pelo governo; da família de ciganos que se mudou para o bairro e chocou o restante da população; do bairro VIII, o mais temido e, por isso, o que mais despertava o meu interesse; do exagero das pessoas ao contar suas histórias; do mau humor estampado no rosto das pessoas e eu, na doçura de ser quem sou; as janelas que se fechavam até nas mínimas frechas e fazia qualquer quarto parecer sala de cinema no meio da tarde; dos passos sem rumo; das árvores com formatos estranhos; de só saber a sigla para as ruas; do parque ao lado e ao fim da rua e logo à frente e em todo lugar; o "melhor bolo da Hungria" que, na verdade, não tinha gosto de nada; da casa das pessoas; das barracas nas ruas; do alívio de encontrar uma padaria; das pessoas que sorriam para mim sem dentes e eu ficava horrorizada, mas sorria de volta, porque sou um amor de pessoa com dentes lindos, brancos e perfeitos, ainda mais na Hungria; de nunca comer nada porque eu achava tudo gorduroso demais; de não comer nada porque eu só sabia cozinhar macarrão; do pão com molho e presunto que, de repente, virou a coisa mais gostosa que eu conhecia; dos infinitos salames que colocaram na minha geladeira e eu nunca comi; da janela que ia do teto ao chão e me fazia sentir medo à noite; do armário embutido no fim da cozinha que era a travessia para outro mundo; do gato que sempre vinha me visitar; de pendurar roupa no varal e morrer vergonha do meu vizinho ver; dos jardineiros mexicanos que eram, no máximo, ciganos; das falcatruas do governo; das amigas que eu fiz; dos amores por quem me apaixonei, vivi e trouxe comigo; da catedral ao fim da rua com suas torres onipotentes (não é bem essa a palavra); de comer cheesecake em qualquer café; dos pães doces que eram bonitos e gostosos, mas me preocupavam por serem de farinha branca; das bicicletas; de caminhar o dia inteiro; da praça dos drogados; do homem que escondia um rato dentro de suas roupas; dos ônibus da época da união soviética que ainda rodavam pelo centro; de correr de madrugada até chegar no meu portão, quando eu voltava sozinha para casa; das bebidas baratas que eu nem bebia; de passar na frente ao cemitério que um dia eu iria visitar; das construções na rua que só acrescentavam àquela confusão toda; dos olhares estrangeiros; de nunca saber em qual entrada do metrô entrar, nem em qual saída sair; de ir ao supermercado e não entender nada; de dividir a chave e ficar presa do lado de fora de casa; de ir comer hambúrguer no meio da semana, de um dia qualquer que era dia especial só porque existíamos; de planejar viagens que, antigamente, pareciam uma excursão para outro planeta; de ouvir as pessoas falarem e contarem os casos de sua vida quando, na verdade, eu só queria ficar ali, sozinha, olhando e sendo; de como estacionavam os carros no passeio e eu achava um absurdo; de comprar chocolate só às sextas-feiras; de tomar sorvete de baunilha que me dava dor de barriga; de ir ao Aldi e achar tudo barato; de toda rua parecer a última parada da civilização; de infinitas lindas pontes que cruzávamos sem parar; de sair à noite para dançar e congelar de frio, querendo só voltar para casa; da pizza de madrugada que era quase de graça; das igrejas ortodoxas nas quais me aventurava e onde me mandavam usar véu sobre os meus cabelos; da revista de graça em inglês, que era a única coisa possível de ler além dos livros que trouxe comigo; de ser amiga dos amigos das minhas amigas; dos convites inusitados; da coragem de ser quem é.
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